Por Alice Sales
Agência Eco Nordeste
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Mais um passo foi dado para a conservação do periquito-cara-suja (Pyrrhura griseipectus), espécie exclusivamente nordestina, cuja ocorrência atualmente se restringe a três pontos do Ceará: serra de Baturité, Quixadá e Ibaretama. A ave, que se encontra classificada como “Em perigo crítico” pela Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), reúne agora esforços de pesquisadores para ser reintroduzida nas matas da serra da Aratanha, situada no município de Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza.
A ação é uma extensão do Projeto Periquito Cara-suja, executado há 15 anos pela Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), na Serra do Baturité, no Sertão Central do Ceará, onde existe uma unidade de conservação (UC) na categoria de Refúgio de Vida Silvestre. A realização culminou no aumento significativo da população da espécie na região, com o auxílio de caixas-ninhos, estratégia muito eficaz para a reprodução dos periquitos em florestas mais jovens que não dispõem de tantos ocos de árvores para abrigá-los.
História e Conservação
Relatos de moradores antigos da Serra da Aratanha apontam que, no passado, o periquito-cara-suja foi registrado na região por pesquisadores e naturalistas. Por ter passado por diversos ciclos agrícolas, a serra teve sua cobertura florestal reduzida drasticamente, o que contribuiu para o desaparecimento da espécie.
“Além disso, o naturalista Antônio Bezerra apontou ordens de matanças de psitacídeos expressas por leis, no ano de 1804, que obrigavam lavradores a abater essas aves ‘de bico torto’ por serem consideradas pragas agrícolas, sob pena de multa ou reclusão. Entre os anos de 1877 e 1879, o Ceará sofreu uma grande seca que esgotou seus demais produtos de exportação, restando a fauna silvestre como fonte de renda”, explica Fábio Nunes, biólogo e coordenador do Projeto Periquito-Cara-Suja, desenvolvido pela Aquasis.
O pesquisador também destaca que, em 1876, foi inaugurada a estação ferroviária do município de Pacatuba, onde fica a Serra da Aratanha. A data coincidente com o início do surgimento de periquito-cara-suja no mercado europeu de venda de animais exóticos. Catálogos de aves em países como França e Inglaterra constavam com gravuras de periquitos-cara-sujas disponíveis para venda, possivelmente capturados na serra da Aratanha.
Reintrodução
Os primeiros periquitos-cara-sujas que deverão repovoar a serra da Aratanha serão exemplares selvagens oriundos da serra de Baturité. Os espécimes serão retirados dos ninhos artificiais durante a noite e colocados em um viveiro de aclimatação construído na serra da Aratanha. A soltura será feita de forma gradual, de modo que as portas do viveiro de ambientação serão abertas após o período de adaptação, permitindo a saída espontânea das aves.
Por se tratar de aves de origem de ambiente similar, a expectativa é que o processo de adaptação em um novo ambiente seja rápido. “Os periquitos têm identificação com a dieta local, sabem se defender de predadores, se reproduzir, etc. Depois de estabelecida a população pioneira, poderão ser utilizados indivíduos provenientes de cativeiro, que receberão todo o conhecimento dos selvagens já estabelecidos,” ressalta Nunes.
De acordo com o coordenador do projeto, a utilização de indivíduos selvagens vindos da serra de Baturité só será possível devido à boa variabilidade genética dessa população e graças ao crescimento populacional experimentado nos últimos anos, por meio do programa de ninhos artificiais. No último ano, o censo de população da espécie realizado no maciço do Baturité apontou a presença de 890 indivíduos, distribuídos em 141 ninhos artificiais espalhados em 51 sítios da região.
As caixas-ninhos também serão usadas na serra da Aratanha com o objetivo de solucionar dificuldades para além da ausência de ocos naturais que auxiliam a reprodução da espécie. Os ninhos artificiais facilitam a escolha de locais seguros, que dificultam a captura dessas aves para o tráfico, já que na maioria das vezes as aves são retiradas dos seus ninhos.
Medalhas de identificação
A reintrodução do periquito-cara-suja na serra da Aratanha vem sendo estudada na pesquisa de Giovanna Rodrigues, bióloga e doutoranda do Programa de Sistemática, Uso e Conservação da Biodiversidade da Universidade Federal do Ceará (UFC). Um novo método de identificação dos espécimes está sendo testado por ela. Diferente das anilhas que geralmente são utilizadas como identificadores, está sendo avaliado o uso de medalhas numeradas que facilitarão identificar cada indivíduo após soltura, além de apresentar dados de sobrevivência e adaptação.
Giovanna detalha que as medalhas funcionam como colares, com placas que são mais visíveis à distância. A pesquisadora esclarece a diferença entre as anilhas geralmente usadas e as medalhas: com as medalhas será possível visualizar dados à distância e não será necessário capturar os espécimes para essa verificação.
“Também vamos monitorar a soltura, avaliar os periquitos, observar a alimentação, se usam as caixas-ninho ou encontram ocos naturais para dormir e o quanto dispersam na área. Além das observações diretas, vamos usar 16 gravadores posicionados em raio a partir do recinto de aclimatação,” ressalta Giovanna.
Expectativas
A ideia é que seja a primeira de muitas reintroduções que precisam ser feitas para essa e outras espécies do Ceará, de acordo com Fábio Nunes. O repovoamento do periquito-cara-suja na serra da Aratanha e em outras áreas de ocorrência histórica significa segurança contra sua extinção. “Atualmente, 80% da população dessa espécie encontra-se na serra de Baturité. O risco de extinção por eventos de patógenos, fogo ou perda de variabilidade genética da população da serra de Baturité pode ser atenuado com o repovoamento,” destaca.
Além disso, o pesquisador ressalta que a iniciativa pode criar frentes de ações que beneficiam outras espécies da região, como a criação de unidades de conservação, mais fiscalização contra crimes ambientais e o engajamento da população local. Tais medidas são fundamentais também para combater uma das principais ameaças identificadas na região: a caça de animais silvestres.
O projeto de reintrodução conta com o apoio financeiro da Loro Parque Fundación, Zoologische Gesellschaft für Arten und Populationsschutz (ZGAP) e American Bird Conservancy; apoio logístico de Fernando Cirino, proprietário do Sítio Espírito Santo; apoio acadêmico e operacional da bióloga e doutoranda Giovanna Rodrigues; e de profissionais de diversas áreas, como o veterinário Leandro Rodrigues e a bióloga Suzete Bastos, do Criadouro Haras Claro, e o zootecnista Mateusz Styczynski; e apoios institucionais como do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave), Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Ceará (Sema) e Batalhão da Polícia de Meio Ambiente (BPMA).