Mesosaurus tenuidens: o “réptil” brasileiro que contou duas histórias sobre a vida na Terra

O bicho da vez é um dos animais mais icônicos do nosso país e importantíssimo para a história da Paleontologia e da Geologia. É um réptil aquático muito comum na bacia do Paraná, que existiu durante o começo do Permiano, entre 299 e 270 milhões de anos atrás, chamado Mesosaurus tenuidens. Esses animais, e o seu clado Mesosauridae, foram os tetrápodes amniotas mais antigos a se adaptarem ao hábito aquático, com corpos esguios, crânios e caudas longas e, possivelmente, pés espalmados, adaptações importantes para ser um bom nadador.

Uma rápida explicação é necessária aqui. Algumas espécies têm nomes muito parecidos. É o caso dos gêneros MEsosaurus e MOsasaurus. Às vezes, a diferença de uma letra poderia significar muito pouco ou quase nada, no entanto, dependendo a quem está se referindo, a mudança pode ser significativa. No caso deste texto, a diferença é brutal – e eu cometi esse erro algumas vezes escrevendo-o.

Os MEsossauros viveram no Permiano, durante a era Paleozoica, e representam uma radiação inicial dos vertebrados amniotas (aqueles animais que colocam ovo amniótico ou, no caso dos mamíferos e alguns répteis, que têm uma gestação interna). Já os MOsassauros são uma linhagem que viveu no Cretáceo, durante a era Mesozoica, e estão mais relacionados aos lagartos ou às serpentes. Diferentemente dos mesossauros, viviam em mar aberto e alcançaram tamanhos enormes! O mosassauro é o réptil aquático gigante que é alimentado com um tubarão no filme Jurassic World. Acho que agora ficou fácil.

Essa explicação foi mais longa do que eu esperava.

Bem, os mesossauros foram répteis que parecem um pequeno jacaré, só que com os dentes para fora da boca. Não eram grandes (chegavam até um metro de comprimento), tinham crânios compridos, caudas longas e pés que ajudavam a nadar em corpos volumosos de água, e os dentes eram finos e pareciam agulhas que se entremeavam quando o animal ficava de boca fechada. São comumente atribuídos a formas adaptadas a hábitos aquáticos, mas evidências geológicas e ósseas sugerem que pudessem andar em terra também. Mas só parecem, porque eles não são jacarés!

Eles foram importantes tanto para a Paleontologia e a história dos vertebrados quanto para a Geologia. A história é a seguinte…

Os fósseis do Mesosaurus foram, primeiramente, encontrados no século 19 na África do Sul e, anos mais tarde, no Brasil, tanto que uma espécie foi descrita para cada continente: o Mesosaurus tenuidens para a África, em 1865, e o Stereosternus tumidum para o Brasil, em 1886. Anos depois, em 1908, descreveu-se o Mesosaurus brasiliensis e, em 1966, o Brazilosaurus sanpauloensis. Nesse meio tempo, muitos avanços paleontológicos aconteceram com o monte de escavações que teve no planeta todo. Uma pá de vertebrados fósseis foi descrita e chegou-se a um consenso na classificação dos amniotas, que era a seguinte. Olhando o padrão de aberturas na parte de trás da cabeça, chamadas de fenestras temporais, constataram-se quatro morfologias distintas no crânio:

• tinham os animais Anapsida, com nenhuma fenestra;
• os animais Diapsida, com duas fenestras, uma superior e outra inferior, nos quais se incluem os atuais répteis e aves, formando um grupo natural com origem única (= monofilético);
• os animais Euryapsida, com uma abertura superior;
• e os animais Synapsida, com uma abertura inferior, onde os mamíferos estão incluídos e que também compõe um grupo monofilético.
• A lógica é que as aberturas surgiram de ancestrais sem aberturas; ou seja, a morfologia anapsida é anterior às outras.

Colocando isso nas relações de parentesco dos tetrápodes, primeiro surgiram animais sem aberturas e depois os animais com aberturas cranianas. Isso não significa, no entanto, que animais com uma morfologia se extinguem para outros surgirem. Muitas linhagens, com e sem aberturas, viveram e se diversificaram ao mesmo tempo e o registro fóssil do Permiano evidencia isso nitidamente. Os mesossauros não possuem aberturas e são tidos como animais anapsidas, atualmente, e sua posição filogenética os coloca dentro do clado Amniota, mais aparentados ao grupo com duas fenestras temporais – Diapsida. Aliás, grande parte das linhagens com crânios anápsidos são colocadas na mesma caixa classificatória chamada Parareptilia, um grupo mais próximo dos répteis atuais.

Falando nisso, os mesossauros somente são considerados como animais amniotas por causa da sua relação de parentesco com outros animais amnióticos. Segue o fio. A árvore filogenética do clado Amniota já se bifurca em duas linhagens que têm animais recentes, todos sabidamente com desenvolvimento amniótico ou em ovo (oviparidade) ou interno (viviparidade): os Synapsida, em que estão os mamíferos, e os Sauropsida (ou Reptilia), com os répteis e as aves. Como resultado, é mais parcimonioso assumir que as características relacionadas a esse tipo de desenvolvimento (= o surgimento dos anexos embrionários alantoide, córion e âmnio) surgiram no ancestral dessas duas linhagens em vez de surgirem mais de uma vez em grupos separados. Sendo assim, todas as linhagens dentro desse nó de divergência são de animais amnióticos, incluindo os mesossauros.

O mais legal é que já se encontraram fósseis de mesossauros contendo ossos pequenos de outros mesossauros dentro do corpo, sem evidências de cascas de ovos, sugerindo que esses animais já pudessem gestacionar seus filhotes. Sendo amniotas, isso faz todo o sentido. O surpreendente é a gestação interna surgir tão logo no começo da irradiação da linhagem, uma característica que só foi catalogada em linhagens alguns milhões de anos depois (até mesmo antes dos mamíferos).

Apesar de serem amniotas, a posição deles dentro do clado é motivo de disputa até hoje. Em geral, as dúvidas recaem sobre duas hipóteses filogenéticas concorrentes.

A primeira, que foi inicialmente proposta, mostrou que os mesossauros fariam parte de uma linhagem chamada Parareptilia, um ramo de diversificação de amniotas “répteis basais”, mais próximos aos répteis atuais (= Diapsida), que, tradicionalmente, possuem crânios anápsidos (= sem aberturas cranianas) e que se surgiram no final do Carbonífero e se diversificaram no Permiano.

A hipótese alternativa é que o clado Mesosauria é uma linhagem própria fora dos pararrépteis, sendo grupo-irmão de todos os outros répteis. Curiosamente, alguns fósseis de pararrépteis mostraram a existência de uma abertura temporal, caso de alguns mesossauros e animais de uma linhagem chamada Procolophonidae, apontando que o surgimento das aberturas cranianas não foi tão simples e pode ter múltiplas razões para surgir. No entanto, dada a posição filogenética desses animais fora dos diápsidos, a ocorrência das aberturas é considerada independente e é fonte de debate, uma das ideias sendo por razões de crescimento (=ontogenéticas).

Outra curiosidade é que incluir os mesossauros nas análises filogenéticas costuma bagunçar a posição de outro grupo, as tartarugas, animais cujas aberturas cranianas estão ausentes, mas que, em contrapartida, possuem escavações com funções similares. Então acaba que uma discussão vira duas e o surgimento desses animais com cascos volta a ser pauta enfática.

Das quatro espécies de mesossauros descritas, somente uma é válida atualmente. Pois é, três delas foram consideradas como pertencentes a uma única espécie. Pela regra de classificação dos organismos, o primeiro nome dado a uma espécie é o nome que deve valer, então, como Mesosaurus tenuidens foi a primeira espécie descrita, é o nome válido. Isso faz com que a linhagem Mesosauria tenha somente uma espécie e um único gênero.

Todos os fósseis já descritos foram encontrados na região centro-sul do Brasil, no Uruguai, nordeste da Argentina e sul da África. No início do Permiano, todos os continentes se movimentavam para se encontrarem e os continentes sul-americano e africano eram muito mais próximos (detalhe: ainda não tinham se encontrado! O final desse encontro ocorreu há aproximadamente 252 milhões de anos, no final do período Permiano, quando ocorreu uma das maiores extinções em massa da história). Nessa interseção entre África e América do Sul, formou-se um grande mar intracontinental hipersalino, onde os mesossauros proliferaram por vários milhões de anos. Eram animais aquáticos e representam a primeira linhagem de amniotas a se adaptarem a esse tipo de hábito. Antigamente, acreditava-se que eram marinhos, mas evidências geológicas de depósitos do Uruguai apontam que o ambiente era um mar dentro do continente com alta concentração de sal.

Entrando na Geologia

Esses fósseis foram muito importantes para outro cara na história, que ajudou a mudar muito o entendimento sobre como o planeta funciona. Por muitos séculos, os mapas cartográficos do mundo criados com a expansão das navegações chamaram a atenção de muitos geólogos, que diziam existir um encaixe quase que perfeito entre a costa leste da América do Sul e a costa oeste da África. Particularmente no século 19, a Geologia passava pelo desenvolvimento de vários conceitos-base para o entendimento do planeta, mas uma grande explicação como essa estava além da capacidade intelectual e tecnológica da época. Ninguém conseguia explicar como surgiu a semelhança entre as costas, logo essas ideias eram rapidamente rejeitadas ou inconclusivas por baixa evidência. Com a semelhança entre as costas, alguns naturalistas invocaram o raciocínio de que os dois continentes foram unidos em algum momento do passado da Terra; junto com eles, outros continentes também, pois também havia semelhanças entre os limites dos continentes, formando um bloco com continentes do norte – a Laurásia – e um bloco com continentes do sul – o Gonduana. No entanto, não se tinha levantado um corpo de evidências para se propor alguma coisa tão revolucionária como essa.

Somente em 1912, um sujeito chamado Alfred Wegener surgiu com a teoria da Deriva Continental – um nome que acredito que muitos já terem ouvido falar. Essa teoria explicava que os continentes se moviam pelo globo e que, no passado, eles teriam se juntado em uma única massa terrestre, a qual Wegener nomeou de… Pangeia! Outros naturalistas sugeriram explicações tais como a de Wegener, mas o corpo de evidências de sua proposta era mais completo, com elementos morfológicos (similaridades vistas nos mapas), paleontológicos (fósseis parecidos encontrados em diferentes continentes), paleoclimáticos (evidências de geleiras em rochas de locais atualmente tropicais) e litológicos (semelhança entre rochas de diferentes continentes).

Porém, tinha uma coisa que ele não conseguia explicar: como todas essas evidências chegaram até onde chegaram. Em outras palavras, que processos físicos da dinâmica terrestre levaram todos esses fósseis e rochas a estarem nesses continentes, o que provaria a teoria da Deriva Continental. É aí que os mesossauros entraram nessa história e fizeram parte do corpo de evidência de Wegener: seus fósseis já tinham sido encontrados tanto na África quanto na América do Sul e sugeriam a existência de uma grande proximidade entre ambos os continentes no passado.

Lamentavelmente, a teoria de Wegener foi rejeitada por muitos anos depois de ser proposta. Somente após o desenvolvimento tecnológico no pós-guerra, usado ao longo das décadas de 1940 e 1950, é que as evidências físicas começaram a ser encontradas pelos pesquisadores. Uma delas foi a detecção da Dorsal Meso-Atlântica, uma cordilheira submersa que cruza o Oceano Atlântico de norte a sul e separa a placa Americana da Euroasiática e Africana. Nesses locais, o magma flui do interior da Terra para a superfície, mostrando que existem fluxos de matéria superquente de dentro para fora, movida por correntes de convecção térmicas geradas pela radioatividade do núcleo terrestre.

Atualmente, a Deriva Continental é um conceito chave pertencente à teoria da Tectônica de Placas (os pedaços que formam a superfície terrestre, submersos ou não) e fundamental para a explicação de diversos padrões biogeográficos – e, às vezes, filogenético – da vida pretérita e atual. Afinal, quando os continentes ficam próximos, espécies podem ser extintas e outras podem ser espalhar por grandes terras, podendo originar outras espécies, por exemplo, por processos ecológicos. Mas as evidências biológicas mais conclusivas surgem como consequência das separações dos continentes, quando populações são simplesmente separadas pela distância, cada uma no seu quadrado, e passa por processos evolutivos em condições diferentes que levam ao surgimento de novas espécies e linhagens. Só lembrando que os continentes se movem de formas muito devagar, logo esses processos levam anos e anos para acontecer.

Como pudemos ver, os MEsossauros foram seres muitos curiosos e com características fascinantes, considerando que surgiram tão cedo na linha evolutiva dos amniotas. Seus fósseis são muito comuns no Brasil, particularmente na formação Irati dos estados do Paraná e Goiás. Por causa deles, muito se entendeu sobre a evolução dos tetrápodes amniotas e muito ainda se discute sobre essa parte da história desse grupo – os mesossauros e os pararrépteis são grupos menos estudados do que os sinápsidos e diápsidos. Muito se entendeu, também, sobre processos fundamentais para a história da vida, no caso a Deriva Continental, que ajuda a explicar a distribuição de muitos organismos; e que posteriormente tornou-se central à teoria da Tectônica de Placas, importantíssima para se entender terremotos e eventos vulcânicos.

Referências

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• Demarco PN, Meneghel M, Laurin M, Piñero G. 2018. Was Mesosaurus a fully aquatric reptile? Frontiers in Ecology and Evolutoin 6:109;
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• Laurin M, Piñero GH. 2017. A Reassessment of the taxonomic position of Mesosaurus, and a surprising phylogeny of early amniotes. Frontiers in Earth Science 5:88;
• Laurin M, Reisz RR. 1995. A reevaluation of early amniote phylogeny. Zoological Journal of the Linnean Society 113: 165-223;
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