Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Reportagem também publicada pela Agência Mongabay
Identificar o risco que os atropelamentos em rodovias representam para as espécies da fauna silvestre vai além de quantificar mortes. É necessário levar em consideração inúmeros fatores para conhecer o quanto as colisões com veículos contribuem para a possibilidade de extinção de um grupo animal em uma região. Por isso, cientistas de oito países se mobilizaram para criar um método que os permitiram elaborar a primeira avaliação global de vulnerabilidade de mamíferos atropelados.
O resultado, divulgado em artigo publicado na revista Global Ecology and Biogeography, indicou 61 espécies de mamíferos vítimas de atropelamentos em situação preocupante de conservação – 23 da Ásia, 14 das Américas Central e do Sul, oito da Europa, seis da África, seis da Oceania e quatro da América do Norte.
Desse grupo, os pesquisadores destacaram as quatro espécies com maior risco de terem populações extintas localmente em 50 anos se os níveis de atropelamentos nas regiões onde vivem persistirem (outros impactos negativos à fauna foram desconsiderados).
Entre as espécies brasileiras, estão a população de lobos-guarás (Chrysocyon brachyurus) que vive próxima a Uberlândia e Uberaba (MG), com 34% de aumento do risco de extinção em função dos atropelamentos, e de gatos-do-mato-do-sul (Leopardus guttulus) do oeste de Santa Catarina, com aumento variando de 0% a 75%.
As outras duas populações mais ameaçadas são a de hienas-castanhas (Hyaena brunnea) do Parque Nacional Mapungubwe, na África do Sul, também com aumento de 0% a 75%, e a de leopardos (Panthera pardus) do Parque Nacional Rajaji, na Índia, com risco aumentado em 83%.
De acordo com a principal autora da pesquisa, a bióloga Clara Grilo, os mamíferos foram escolhidos para o estudo pelo fato de haver mais trabalhos sobre atropelamentos com esse grupo de animais e por existirem dados demográficos em quantidade suficiente para serem aplicados no método criado, que se baseia em cálculos.
A metodologia
O trabalho que permitiu identificar as espécies mais vulneráveis foi desenvolvido em três etapas. Inicialmente, foi realizada uma grande busca na internet por trabalhos que registraram o número de atropelamentos de mamíferos entre 1995 e 2015, de qualquer parte do mundo.
Para localizar esse material, foram utilizadas palavras-chaves em cinco línguas (inglês, espanhol, português, chinês e russo) e separados somente aqueles trabalhos que pesquisaram pelo menos três quilômetros de estrada por um período mínimo de um mês.
Com esses dados, foi calculada a taxa anual de atropelamentos (número de animais mortos por quilômetro de estrada por ano) para a espécie em estudo, que posteriormente foi aplicada para todas as rodovias (exceto as que cruzam áreas urbanas) em um raio de até 50 quilômetros.
“Na primeira etapa, compilamos todos os trabalhos e identificamos 392 espécies com registros de atropelamentos. Depois, selecionamos seis com as taxas mais altas de atropelamento e todas as espécies com estatuto de ameaça por continente para correrem nos modelos populacionais”, explicou Clara.
A etapa seguinte consistiu em calcular o aumento do risco de extinção por atropelamentos para cada espécie selecionada, partindo do pressuposto de que, sem estradas, a população de cada grupo animal estaria estável em 50 anos.
“Incluímos dados demográficos, como o tamanho das ninhadas, o número de ninhadas por ano, a longevidade, a taxa de sobrevivência, a maturidade sexual e depois incluímos a perda de indivíduos devido aos atropelamentos, que é a média da proporção da população atropelada em um ano”, disse Clara. Somente os atropelamentos foram considerados como impacto negativo no cálculo.
A última etapa calculou qual seria a proporção da população atropelada necessária para aumentar em 10% o risco de extinção de 4.677 espécies de mamíferos ao redor do mundo. Para os animais em que havia falta de dados, foi aplicado um modelo de cálculo desenvolvido pelo pesquisador e professor do Departamento de Biologia da Universidade da Flórida Central, Eric Goolsby, que estimou valores de características (longevidade, taxa de natalidade etc.) a partir de relações de “parentesco” entre as espécies.
Foi nessa fase em que se elaborou a avaliação global de vulnerabilidade. “Por exemplo, nós estimamos que se 14% da população de onças-pintadas for atropelada pode haver o aumento do risco de extinção em 10%. Mas esta estimativa pode estar superestimada porque a espécie já sofre outras ameaças e, por isso, a proporção da população atropelada pode ser menor que 14% para aumentar o risco de extinção em 10%”, afirmou Clara. Todo o trabalho não contou com financiamento e se baseou em uma parceria entre os pesquisadores. O estudo durou seis anos até ser publicado.
Lobo-guará
Os dados sobre atropelamentos usados para avaliar a vulnerabilidade da população de lobos-guarás no entorno de Uberlândia e Uberaba foram retirados da dissertação de mestrado defendida pela bióloga Carine Firmino Carvalho-Roel em 2014. O trabalho, que se baseou no monitoramento de fauna atropelada do trecho de 96 quilômetros da BR-050 que liga os dois municípios, contabilizou oito animais da espécie mortos por impactos com veículos na estrada.
Durante um ano de levantamento de casos, Carine encontrou 690 vertebrados mortos por atropelamentos. Destes, 70% eram mamíferos, 21% aves, 8% répteis e 1% anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas). “Continuamos o monitoramento por mais um ano e chegamos ao total de 17 registros de lobos-guarás”, afirmou a bióloga, que atualmente é pesquisadora de pós-doutorado pela Universidade Federal de Uberlândia.
Sobre o aumento do risco de desaparecimento dos lobos-guarás no Triângulo Mineiro, região onde situam-se Uberlândia e Uberaba, Carine concorda com a avaliação coordenada por Clara Grilo. Para ela, seria necessário continuar o monitoramento da BR-050 para obter uma amostragem maior e tentar identificar qualquer tipo de padrão, como possíveis locais onde ocorra a recorrência de atropelamentos para a espécie.
“Investir em uma pesquisa cujo foco seja o lobo-guará é uma das medidas mais importantes no momento. A partir desses dados, a proposição de ações mitigadoras para diminuir os atropelamentos pode ser feita”, destaca Carine.
O lobo-guará corre risco de extinção, estando classificado como “vulnerável” na lista da fauna ameaçada de Minas Gerais e no Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção do ICMBio (2018). Já pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), a espécie consta como “quase ameaçada”.
Gato-do-mato-do-sul
Para determinar o nível de vulnerabilidade da espécie Leopardus guttulus em Santa Catarina, Clara e seus parceiros trabalharam com os dados de um resumo de pesquisa apresentado em 2012 no 6º Congresso Brasileiro de Mastozoologia, em Corumbá (MS). O trabalho apresentou resultados do levantamento de carnívoros mortos por atropelamento em 20 quilômetros da BR-282, entre os municípios de Nova Itaberaba e Chapecó.
Entre 19 de setembro de 2011 a 26 de fevereiro de 2012, o biólogo João Carlos Marocco, que não época era ligado ao Laboratório de Zoologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó, registrou 20 animais de quatros espécies de carnívoros mortos na rodovia. Desse total, havia um gato-do-mato-do-sul – que na época foi identificado como gato-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus), já que só em estudos posteriores houve consenso entre cientistas de tratar-se de outra espécie.
“Eu desconhecia no momento da publicação do nosso artigo que tinha havido uma revisão taxonômica”, explicou Clara, que em seu trabalho ainda considerou a espécie como Leopardus tigrinus para o caso de Santa Catarina.
“Além dos atropelamentos, os gatos-do-mato-do-sul sofrem com fragmentação de habitat, desmatamento, avanço da agricultura e caça”, relatou Marocco. A espécie está classificada como “vulnerável” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) e no Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção do ICMBio (2018).
Pelo fato de haver uma grande variação entre os números indicados em pesquisas para estimar a população da espécie, o risco de o Leopardus tigrinus desaparecer do oeste de Santa Catarina, tendo os atropelamentos como impacto negativo na análise, é de 0% a 75%. “Se o valor de densidade populacional for o mais alto na região, o risco de extinção pode ser zero com a taxa de atropelamento observada”, explicou Clara.
Carine concorda com a afirmação de Clara sobre a necessidade de avaliações com mais variáveis para determinar a vulnerabilidade das espécies. “Não podemos somente olhar para o número de indivíduos atropelados. Temos que considerar outras características da espécie para poder falar se esta está ameaçada ou não. Um exemplo: a espécie X teve, em um ano, 100 indivíduos atropelados; enquanto a Y somente 10. Se olhássemos somente para a quantidade de atropelamentos, diríamos que a espécie X sofre maior ameaça. Mas, depois de fazer um levantamento na região, os pesquisadores identificam 3 mil indivíduos da espécie X e 100 da Y. Assim, a espécie X estaria perdendo 3,3% da sua população enquanto a espécie Y 10%”, explica a pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia.
Os lobos-guarás do Triângulo Mineiro e os gatos-do-mato-do-sul de Santa Catarina são bons exemplos de espécies em que os números totais de animais atropelados são baixos. Mesmo assim, se forem consideradas as variáveis demográficas desses animais e nada for feito para reduzir a quantidade atual de atropelamentos, em 50 anos eles poderão estar localmente extintos. “O trabalho permite guiar os consultores e analistas para as espécies que podem estar ameaçadas com determinados níveis de atropelamento e, dessa forma, ajudar a adotarem medidas para prevenir que atinjam valores altos que impactem as populações desses animais”, concluiu Clara.