Por Karlla Barbosa
Bióloga, observadora de aves, mestra em Conservação Ambiental e Sustentabilidade e doutora em Zoologia
observaçãodeaves@faunanews.com.br
As lendas e os contos fazem parte da história da humanidade e, apesar de serem muito mais presentes no passado, várias delas ainda estão entre nós até hoje.
Por voarem e acreditar-se que poderiam ir a qualquer lugar, as aves em diversas culturas fizeram parte de contos ao longo da história, sendo seres representantes da divindade ou percursores do mal. Alguns desses símbolos de mitologia são bem conhecidos, como a Fênix. Outros são menos conhecidos, como o Benu, o Alkonost, o Anzu, o Karura, entre tantos.
O mais impressionante é que até hoje existem lendas com aves atualmente viventes. Você provavelmente já ouviu falar de algumas e pode até ter se perguntado se elas eram verdade. Uma lenda famosa é sobre as águias idosas que vão para o alto de uma montanha e arrancam o próprio bico e as unhas para se renovar e ter uma vida nova. Ou a lenda russa sobre o Alkonost, uma criatura com cabeça de mulher e corpo de pássaro. Ele cantava melodias encantadoras e aqueles que ouviam sua canção abandonavam tudo o que já haviam conhecido, não desejando mais nada enquanto vivessem.
Muitas das lendas que envolvem as aves brasileiras estão relacionadas ao mau agouro, como é o caso das corujas grandes vítimas desse mal-entendido. Além delas, muitas outras espécies são conhecidas por histórias no mínimo curiosas:
Uirapuru: um pássaro mágico
O uirapuru (Cyphorhinus aradus) é uma ave da Amazônia que tem um canto elaborado e muito bonito. Diz a lenda que quem o escuta na mata tem muita sorte e deve fazer um pedido imediatamente, pois ele será realizado. Essas crenças estão relacionadas principalmente com a conquista da pessoa amada.
Existe um conto que diz que o uirapuru já foi um jovem apaixonado, que se enamorou com uma índia que já se relacionava com outro índio. Ao descobrir o romance, o cacique expulsou o apaixonado rapaz para a floresta, onde, após pedir ao deus Tupã, ele se transformou em um uirapuru. Assim ele podia cantar para sempre e não ser esquecido por sua amada.
Urutau ou mãe-da-lua: o lamentador
Os urutaus são aves noturnas de comportamento muito característico: ficar pousado imóvel em um tronco vertical durante o dia. A espécie mais comum (Nyctibius griseus) é a mais relatada nas crenças, principalmente por seu canto melódicos, melancólico e até assustador, que parece mais o lamento de uma criança ou mulher. Até o nome da espécie já é sugestivo: urutau = ave fantasma (em tupi).
Na Amazônia peruana acredita-se que a ave tenha sido um bebê que fora abandonado por sua mãe na floresta para morrer, pois estava com uma doença que já dizimou todo o povo. Essa criança chora as noites na floresta. Já outra lenda, esta boliviana, conta que a filha de um cacique e um guerreiro de sua tribo estavam apaixonados e enamorados. Ao saber do romance, o cacique matou o pretendente para que ele não ficasse mais com sua filha. Ao descobrir o acontecido, a índia enfurecida disse que contaria para toda a tribo. Seu pai, para calá-la, a transformou na ave noturna, que então passou a lamentar em um canto triste durante as noites.
Curiangos: chupa-cabras
Bacuraus e curiangos são aves noturnas muito pouco conhecidas até os dias atuais. No passado, eram envoltas em muitas lendas e mitos. Na Europa antiga, a sua presença durantes as noites próximo a estábulos em fazendas levou à crença de que tinha o hábito de mamar em cabras, que pouco tempo depois acabavam cegas. Essa crença era tão difundida na Europa da época que está presente em relatos dos filósofos Aristóteles e Plinio e, após a proposta de nomenclatura zoológica por Linnaeus em 1758, esse suposto hábito foi incorporado ao nome genérico pelo qual os componentes da família eram incluídos na época: Caprimulgus (capri é cabra e mulgus, mamar). Até hoje essa é encontrada nos nomes populares dos bacuraus em países de língua inglesa e espanhola, como goatsuckers e chotacabras.
Acauã: a ave do mau agouro
Para mim, o acauã (Herpetotheres cachinnans) é um dos falconiformes mais encantadores e que me dá uma imensa alegria em ouvir. Em inglês, o nome dessa espécie é Laughing Falcon), devido a um dos seus cantos parecer uma risada, um dos motivos pelo qual, para mim, sua vocalização remete a algo bom. Ao contrário disso, a espécie é conhecida como uma ave que dá azar. Seu canto já foi interpretado como “Deus quer um” e, com isso, acredita-se que quando canta, ela anuncia a morte de quem a escuta (versão do Espírito Santo) ou a morte de um desconhecido (versão de Minas Gerais). O canto pode, inclusive, indicar seca para o sertão, como diz a música.
“Chamando a seca pro sertão
Acauã, Acauã,
Teu canto é penoso e faz medo
Te cala acauã,
Que é pra chuva voltar cedo” (Acauã – Zé Dantas)
Bem-te-vi: denuncia e engravida
Uma lenda paraense diz que quando o bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) canta sobre um quintal ou casa, alguma mulher daquela residência ficará grávida. Então as mulheres ficam sempre atentas aos hábitos desse passeriforme tão comum nas cidades. Uma outra lenda diz que o bem-te-vi foi quem denunciou Jesus Cristo, quando procurado pelos judeus. Sendo que outra versão dessa história diz que a denúncia foi feita quando Jesus era menino e seus pais fugiam com ele para o Egito, para evitar ser morto (fonte: CEO).
Meu falecido avô Olaf me contava ainda uma outra história. Meio em tom de piada, ele dizia que havia uns ladrões assaltando uma residência e que, de repente, ouviram: “bem-te-vi”. Eles entenderam como se estivessem sendo denunciados e saíram correndo largando tudo para trás.
João-de-barro: macho prende a fêmea dentro da casa (ninho) como punição
Essa lenda é muito presente nas áreas rurais do país e não se sabe ao certo como pode ter começado. O ninho do joão-de-barro (Furnarius rufus) é elaborado e com câmaras para dificultar a entrada de predadores. Existem relatos de que a fêmea entrou no ninho e não foi mais vista, dando a impressão de que ficou presa.
Essa lenda foi longe e está presente até em letras de músicas, na voz de grandes artistas como Sergio Reis e Maria Gadú.
“Oh, meu Deus, me traz de volta essa menina
Porque tudo que eu tenho é o seu amor
João de Barro, eu te entendo agora
Por favor, me ensine como guardar meu amor” (João de Barro – Leandro Leo/Rafael Portugal)
ou
“Mas neste mundo o malfeito é descoberto
João de Barro viu de perto sua esperança perdida
Cego de dor
Trancou a porta da morada
Deixando lá a sua amada presa pro resto da vida” (João-de-barro – Muribo Cury/Teddy Vieira)
Esses são só alguns dos contos mais famosos já disseminados hoje na internet. Então, se a curiosidade ficou aguçada sobre o assunto, aqui vai uma dica de livro para saber mais: Lendas e Relendas – Aves do Brasil, de Fernando Costa Straube.
Eu realmente acredito que observar uma ave traz muita sorte! E você, o que acha?
Sejam em forma de lendas ou, simplesmente, de dúvidas, nós ainda temos muito o que descobrir sobre as aves. Então, nessa hora entra o papel importante do observador de aves de registrar não apenas a imagem delas, mas também seus comportamentos. Fotografe, anote e reporte nas plataformas de ciência cidadã. Você pode contribuir muito com o conhecimento sobre as espécies.
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