Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
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Pode pular na piscina meu filho, mas não vá se molhar!
Os javalis foram considerados espécie nociva pela Instrução Normativa do Ibama nº 03/2013, que em seu artigo 1º declara “a nocividade da espécie exótica invasora javali-europeu, de nome científico Sus scrofa, em todas as suas formas, linhagens, raças e diferentes graus de cruzamento com o porco doméstico …”.
Esta declaração possibilitou o controle da espécie seja por armadilhas ou por atividade de caça, já que o artigo 37 da Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) determina não ser crime o abate de animal quando ele for declarado nocivo pelo órgão competente (excludente de ilicitude).
Dentre as formas de controle de javalis, a caça predomina no Brasil. Ela pode ser ativa, em geral utilizando cães, ou passiva, quando se aguarda o animal em uma ceva. Ceva é quando se deposita alimento em determinado local de forma a atrair o animal e o caçador estará posicionado o esperando. Daí que este tipo de caça também é chamado de espera e, muitas vezes, o caçador se aloja em um jirau, uma plataforma a uma determinada altura.
Na caça ativa normalmente são usados cães que possuem como função rastrear e acuar ou espantar a presa para que o caçador possa atirar. Mas, existe outra possibilidade de uso dos cachorros, em geral envolvida nas caçadas em que o caçador mata o javali com uma lâmina, que pode ser uma faca ou uma zagaia (pequena lança). Nessa outra situação o cão tem por função imobilizar o javali de forma que o caçador possa, com segurança, se aproximar e esfaqueá-lo. Os cães que imobilizam o javali são chamados de cães de agarre, sendo o dogo argentino uma das raças utilizadas. Para imobilizar o javali, ocorre uma luta entre cão ou cães e o javali. Normalmente, inclusive por estar em maior número, o cachorro vence a disputa, mas em várias situações o javali consegue ferir e matar cães.
https://youtu.be/tmghWhvXmuk
Resultado de uma caçada: além do javali, um cachorro morreu e outros cães ficaram bastante feridos. Só o humano não sofreu – Vídeo fornecido por Roberto Cabral Borges
A Constituição Federal, em seu artigo 225, mais especificamente no inciso VII do parágrafo 1º, determina que incumbe ao poder público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. A luta entre animais certamente os submete à crueldade. Além do óbvio senso comum, aliás uma das bases do Direito, tecnicamente a questão também não suscita dúvidas.
Esse é o entendimento técnico do Conselho Federal de Medicina Veterinária que, na Resolução nº 1.236/2018, no inciso XXVII do artigo 5º, manifestou explicitamente que estimular, manter, criar, incentivar, utilizar animais da mesma espécie ou de espécies diferentes em lutas é considerado maus-tratos. O inciso XXVI do artigo 3º da Lei Distrital nº 4.060/2007 (do Distrito Federal) também assim o considera ao determinar como maus-tratos o ato de “realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécies diferentes, rinhas, touradas e simulacros de touradas, ainda que em lugar privado”.
Artigo 32 da Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) considera crime com pena de detenção de três meses a um ano, e multa a prática de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. No entanto, se o ato atinge cães ou gatos, conforme disposto em seu parágrafo 1º, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda.
Dessa forma, fica evidente que a prática de caça com cães de agarre contraria o disposto na Constituição Federal e, ainda, sujeita os agentes à conduta tipificada no artigo 32 da Lei nº 9.605/1998. Qualquer discussão técnica ou jurídica que houvesse sobre o tema foi afastada pela Resolução nº 1.236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária, a qual também se encontra alinhada a Lei nº 4.060/2007 do Distrito Federal.
A prática de caça com cães de agarre sem maus-tratos é como deixar seu filho pular na piscina, mas adverti-lo que se ele se molhar, será punido.
https://youtu.be/18NEkllAonU
Cães durante ataque a javali, que mordeu e manteve preso um dos cachorros até ser morto com um tiro na cabeça. Detalhe: os caçadores não demonstram pressa em acabar com a luta dos animais – Vídeo fornecido por Roberto Cabral Borges
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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