Insetos de Natal e uma homenagem a Claudio Gilberto Froehlich

Chegamos àquela época do ano em que todos respiram com um pouco mais de esperança, em que pese os conflitos e destruições minarem nossa crença em dias melhores. Mas, enfim, é Natal e daqui a pouco terminará mais um ano difícil para nosso combalido – e cada vez mais quente – planeta azul.

Insetos não são lá exatamente as criaturas mais tradicionalmente associadas às celebrações de fim de ano. O que, de certa forma, pode ser um pouco reflexo de nossa subserviência às liturgias do Hemisfério Norte, gerando cenas que contrariariam a lógica imaginativa, como a de um Papei Noel vestindo casaco vermelho nos 40 graus do verão carioca e que, supostamente, à noite voa em trenó puxado por renas, ao invés de veados-mateiros ou cervos-do-pantanal, e entra nas casas brasileiras por chaminés que nem existem nelas.

Enquanto aqui os insetos pululam no calor dezembrino, lá nas “Europas” o derradeiro mês do ano no calendário gregoriano costuma ser frio que só, o que tende a fazer nossos amigos de seis pernas rarearem. Moral da história, os insetos acabam sumindo também nos contos natalinos, forjados em meio a neve e gelo.

Abelhas e a Virgem Maria

Mas, catando daqui e espremendo dali, é possível estabelecer algumas relações. Na base do bom humor, pois de dura basta a vida. Assim, os insetos, embora pequenos e muitas vezes ignorados, têm presença simbólica significativa em muitas culturas ao redor do mundo, inclusive, é claro, durante as festividades de fim de ano. No Natal, um dos insetos mais emblemáticos é a abelha. Tudo graças à ligação com uma das protagonistas da época e mãe do aniversariante.

Abelhas têm sido veneradas e, em muitas culturas ao longo da história, são associadas à diligência, resiliência e comunidade [1]. Essas qualidades podem ter contribuído para uma associação simbólica à Virgem Maria. Além disso, a colmeia é centrada na abelha rainha, cargo de realeza que também é imputado à Nossa Senhora, a “Rainha da Paz”, aquela que, em uma determinada oração, começa logo sendo saudada com um “Salve, Rainha”.

Há ainda uma ligação bastante incomum entre os laboriosos insetos da ordem dos himenópteros (Hymenoptera) e da família dos apídeos (Apidae) com aquela que, em sua versão Aparecida, é a Padroeira do Brasil. Conhecida como Nossa Senhora do Mel, em Mirassol, estado de São Paulo, uma estátua de Nossa Senhora de Fátima é famosa por verter milagrosamente sal e mel, além de outras substâncias, fazendo com que ela seja levada em peregrinação por lares e igrejas Brasil afora. Isso ocorre desde o ano de 1993 [2]. Assim, as responsáveis pela produção de mel no mundo natural, as abelhas, passam a reforçar o time dos insetos associados à Nossa Senhora, tema já conversado aqui neste espaço [3]. Por sinal, o mel é frequentemente citado no Velho Testamento da Bíblia católica, como símbolo da fartura e da terra que produz. E o mel é doce, assim como doce é o amor presente no sagrado coração de Nossa Senhora [2].

Outros insetos e as festas de fim de ano

Sobre o grande aniversariante do Natal, já foi falado por aqui [4] que ele ganhou presentes de alguns insetos – inclusive da abelha, que presenteou o recém-nascido Jesus com o valioso produto supra citado, o mel. Mas há uma curiosa associação do filho mais famoso de Maria com um inseto que é comum nos ambientes de água parada: o percevejo-patinador, integrante da ordem dos hemípteros (Hemiptera) e da família dos gerrídeos (Gerridae). Esse pequeno inseto aquático patina sobre a superfície da água, não vencendo a tensão superficial. Literalmente, ele desliza sobre a lâmina d’água, lembrando a famosa passagem religiosa em que Jesus teria caminhado sobre as ondas. Por isso, o insetinho ganhou um santo apelido: inseto-jesus [5].

Ao longo de seu desenvolvimento, os insetos passam for diferentes estágios. No caso daqueles com metamorfose completa, esses estágios são os de ovo, larva, pupa e adulto, com drásticas transformações de um para o seguinte, quase como a “evolução” de um Pokémon. Provavelmente o grupo de insetos em que esse tipo de desenvolvimento é mais conhecido pelo público em geral seja o dos lepidópteros (Lepidoptera), ordem que inclui as borboletas e mariposas. Por conta desse desenvolvimento de lagarta a borboleta/mariposa, a ordem é vista como símbolo de renascimento e nova vida, o que é particularmente adequado para o Ano Novo.

E não é que deu mesmo para falar de alguns insetos? Que ano que vem a gente consiga falar ainda mais e que, antes, todo mundo tenha uma ótima celebração de Natal. Com paz, amor, serenidade e esperança.

Sobre o Claudio

Reservo a metade final deste nosso espaço para falar de uma figura de grandeza ímpar. O primeiro contato que tive com o Claudio foi sem perceber. No final do ano 1985, ao ingressar como estagiário no Laboratório de Entomologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conheci um livro que, à época, bem como antes e também depois, era apresentado a todo aspirante a entomólogo: o quase mitológico Introdução ao Estudo dos Insetos, de D. J. Borror e D. M. DeLong [6], edição traduzida ao português a partir do original de 1969. Uma obra verdadeiramente notável. Exatamente, o Claudio foi um dos tradutores.

Logo depois, estudando os insetos da ordem dos efemerópteros (Ephemeroptera) de um brejo temporário em Maricá, estado do Rio de Janeiro, me deparei com Caenis cuniana, da família dos cenídeos (Caenidae), interessantíssima espécie então conhecida apenas por exemplares fêmeas. Desde a descrição original, foi caracterizada a reprodução partenogenética na espécie [7], uma forma de reprodução sem a participação dos machos, em que a mãe basicamente produz clones de si mesma. De Maricá, descrevi o primeiro exemplar macho conhecido da espécie [8], mas quem pela primeira vez descreveu Caenis cuniana e escolheu seu nome foi o Claudio [7].

Um bom punhado de anos mais tarde, pude conhecer o Claudio pessoalmente. Em 1994, ele participou da banca de avaliação da minha dissertação de mestrado [9], junto ao Programa de Pós-graduação em Zoologia do Museu Nacional da UFRJ. Lembro de ter ficado impressionado com o jeito calmo, pausado, cortês, elegante e de absoluta educação com o qual Claudio tratava todo mundo. Felizmente, a partir daí, passei a encontrar o Claudio eventualmente, sempre uma tremenda oportunidade de aprendizado de minha parte.

A partir do início do século 21, o Claudio começou a me convidar para participar de bancas de mestrado e doutorado de seus orientandos junto à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP) – hoje todos eles são figuras de destaque da Entomologia brasileira.

No início, ir a Ribeirão Preto não era tão fácil quanto hoje em dia. No meu caso, era um voo do Rio de Janeiro para São Paulo e, posteriormente, outro para Ribeirão Preto, esse em um aviãozinho bem melhor. Emoções fortes garantidas pois, via de regra, o “bicho” balançava muito quando estava para chegar em Ribeirão. E a participação da banca era no estilo “bate e volta”, com a ida e a volta no mesmo dia.

Já na minha primeira banca na USP de Ribeirão Preto, aprendi logo que a galera tem um remédio super manjado para resistir ao calor: a boa e velha cerveja gelada, preferencialmente da marca do pinguim, que é nativa de lá. Então, nessa minha estreia, peguei cedo um voo do Rio de Janeiro para São Paulo, outro (turbulento) para Ribeirão Preto, chegando quase na hora do início dos trabalhos. Finda a defesa da tese, Claudio sugeriu que eu deixasse a mochila no laboratório dele e fomos comemorar com a equipe, enquanto não dava a hora de meu voo de retorno. Cerveja vai, cerveja vem, eu confesso ter ficado um pouco apreensivo com o horário, pois não tinha conhecimento sobre a distância para o aeroporto e, muito menos, o tempo necessário para vencê-la. Minha apreensão se transformou em pânico quando, meio que do nada, o Claudio olhou para mim e perguntou/afirmou:

– “Você deixou a mochila no meu laboratório, não? Então temos que ir!”

Começou uma corrida contra o tempo para pegar a mochila e rumar ao aeroporto. No percurso, à medida que a leve embriaguez foi sendo derrubada pela adrenalina, crescia em mim a certeza de que não daria tempo. Claudio parou o carro no aeroporto, eu me despedi velozmente e, ao cruzar a porta, me deparei com uma enorme fila de check-in. Pois é, era uma época sem a facilidade do check-in pela internet. Imbuído de uma cara-de-pau que, definitivamente, não tenho, furei a fila dizendo algo como “Gente, me desculpem, estou super atrasado e meu voo já vai sair…” Nem sei se obtive resposta e se ela foi respeitosa ou não, só sei que, esbaforido, cheguei ao balcão. A atendente logo percebeu do que se tratava:

– “É o voo pra São Paulo, né? Ele tá atrasado uma hora. Relaxa.”

A sensação que tenho é que foi a primeira vez que eu respirei desde que tinha saído do bar. Nem bem eu tinha me recuperado e, ao virar de lado, me deparei com o Claudio. Ele tinha ido conferir se eu conseguiria pegar o voo, do contrário teria que dar um jeito de me albergar até o dia seguinte. Desde então, em cada uma das muitas vezes em que retornei a Ribeirão Preto para participar de bancas do pessoal do Claudio, ele sempre me tranquilizava, dizendo, com seu bom-humor contido, que me levaria com antecedência para o aeroporto.

Em 27 de novembro de 2023, aos 96 anos de idade, o professor doutor Claudio Gilberto Froehlich deixou enlutada a Entomologia brasileira ao partir desta existência terrena e ingressar no panteão dos imortais da Ciência. Pioneiro nas pesquisas sobre taxonomia e ecologia de insetos aquáticos no Brasil, é uma referência mundial no estudo da ordem dos plecópteros (Plecoptera). Sua destacada produção científica é composta de mais de cem produções textuais de imenso valor, dentre artigos, livros e capítulos. Mais do que exaltar sua incomparável excelência como cientista, eu quis aqui prestar uma homenagem ao Claudio enquanto ser humano impecável. Sua trajetória na Entomologia certamente será narrada, destacada e homenageada pelos seus eternos orientandos, esses sim o seu verdadeiro legado científico. A eles e aos familiares do Claudio, deixo o meu abraço fraterno.

Daqui a um mês visitarei novamente Ribeirão Preto para, com muita honra, participar do tradicionalíssimo Curso de Verão em Entomologia. Assim que acabar a minha palestra, brindarei ao Claudio. Descanse em paz, velho amigo. E obrigado por tudo.

Referências

• [1] abelha.org.br
• [2] https://leonardoconcon.com.br/cidade/religiao/nossa-senhora-do-mel-reune-milhares-de-fieis-no-santuario-de-olimpia/
• [3] https://faunanews.com.br/a-senhora-dos-insetos/
• [4] https://faunanews.com.br/um-natal-com-historias-de-tanajuras-vagalumes-e-outros-insetos/
• [5] https://www.insetologia.com.br/2016/12/inseto-jesus-em-brasilia.html
• [6] Borror, D.J. & DeLong, D.M. 1969. Introdução ao estudo dos insetos. Editora Edgard Blüchel.
• [7] Froehlich, C. G. 1969. Caenis cuniana sp.n., a parthenogenetic mayfly. Beitrage zur Neotropischen Fauna 6(2): 103-108.
• [8] https://www.scielo.br/j/rbzool/a/DgjGhDsyTHtrqw36mgncwYb/?format=pdf
• [9] https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/4128/3/273716.pdf
• [10] https://www.ffclrp.usp.br/noticias/integra.php?id=4941

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