Gestão de fauna no Brasil: fragmentação e caos por culpa de uma lei

A Lei Complementar n° 140/2011 buscou delimitar as competências ambientais na esfera administrativa entre Municípios, Estados, Distrito Federal e União. Suas consequências para a fauna foram desastrosas. Atrasou a gestão dessa área no Brasil em mais de uma década, talvez duas. Provavelmente, a intenção não tenha sido essa, mas a boa intenção não salvou os animais do desastre.

Gestão de zoológicos

Como principal inovação, a Lei Complementar n° 140/2011 repassa aos Estados e ao Distrito Federal a competência, que antes era da União, em autorizar criadouros de fauna silvestre. O primeiro problema recai sobre a ausência de conceitos na lei de forma a não deixar dúvidas sobre a intenção do legislador. O termo “criadouro” é específico e na lei não constou o termo “zoológico”. Como zoológico é um empreendimento consolidado no senso comum e de cenário internacional, entende-se que se o legislador o quisesse alcançar haveria deixado explícito. Mas não foi o que houve.

Assim, advogo que o repasse aos órgãos Estaduais e do Distrito Federal não alcança zoológicos, sendo que a gestão desses empreendimentos deveria permanecer com a União. Porém, embora sensata e lógica, não foi o entendimento predominante. Com isso, os zoológicos, em sua maioria, estão atualmente fora da gestão da União – ou seja, do Ibama.

Silvestres nativos e exóticos

Outra relevante questão se refere à abrangência do termo “silvestre”. Enquanto do ponto de vista biológico, silvestre se contrapõe a doméstico e envolve tanto as espécies nativas quanto exóticas, no âmbito de nosso ordenamento jurídico não é assim que ocorre. Na Lei Complementar n° 140/2011 e na Lei n° 9.605/1998 fica explícito que sempre que o legislador se refere à “fauna silvestre nativa” ele a trata meramente por “silvestre”. E quando se refere a “fauna silvestre exótica”, ele a trata apenas como “exótica”.

De tal forma, seguindo o disposto na lei e não a interesses interpretativos, o repasse de competência aos Estados e ao Distrito Federal se limitou aos criadouros de espécies da fauna silvestre nativa, já que o texto da lei se refere a criadouros de fauna silvestre. Os zoológicos e espécies exóticas permaneceriam, portanto, sob a gestão da União (Ibama). Essa posição é, inclusive coerente, já que zoológicos possuem grande quantidade de espécies exóticas (leões, girafas, tigres, etc.) e cabe à União autorizar o ingresso desses animais no Brasil. Ademais, como determinado Estado pode autorizar a criação e o comércio, por exemplo, de pogona (dragão barbudo), uma espécie de lagarto do deserto australiano? Essa espécie não brotou aqui no Brasil. O Ibama proíbe sua entrada para criadouros, animais de estimação e comércio. Então, sua existência em território nacional denota tráfico internacional de animais. Da mesma forma, é estranho que um órgão estadual de meio ambiente (OEMA) autorize a criação de uma espécie que não ocorre em seu território, mesmo que seja originária do Brasil e caso não exista criadouro em outro Estado onde ela ocorra naturalmente. De onde virão esses animais? A outra OEMA autorizou ou autoriza sua captura para iniciar o criadouro?

Ademais, outra questão se faz imperativa: o que fazer quando uma OEMA autoriza a criação de uma determinada espécie e outra não? Depois de comprar o animal em um Estado, a pessoa poderá se mudar para o Estado onde a criação daquela espécie é proibida? Uma espécie ou subespécie que não ocorra em determinado Estado e seja para ele levado, qual o risco de fuga ou soltura e invasão ambiental? É uma preocupação prática, aplicável, por exemplo, às diversas espécies de Epicrates (jiboias-arco-íris) que possuem distribuição geográficas distintas e hoje são comercializadas no Brasil.

Esta fragmentação da gestão, a ausência de conceitos e regras claras, além da falta de diretrizes na integração nacional e padronizações mínimas são alguns dos problemas da Lei Complementar n° 140/2011 e denotam como sua edição foi nefasta para a biodiversidade brasileira.

Ampliação da criação comercial de exóticos

Com base nela, embora de forma equivocada, se alastrou pelo Brasil criadores comerciais de espécies exóticas com potencial invasor. Dentre eles, pode-se citar a criação de pítons, king snake, jiboia-dos-andes, jiboia-da-argentina, jiboia-de-madagascar, gecko, pogona, ouriço-pigmeu, sand boa, dentre outras espécies que não ocorrem no Brasil, não tiveram sua introdução autorizada e, certamente, não brotaram em cada Estado que autorizou sua comercialização.

As jiboias dos-andes e da-argentina, por exemplo, embora exóticas, possuem a capacidade de se reproduzir com as nossas e provocar um desastre genético e ambiental. Não obstante, sob influência de criadores, um Estado editou uma lei permitindo a criação de subespécies de Boa constrictor em uma clara tentativa de possibilitar a criação destas espécies exóticas. Isso está sub considerado e ainda não vi a academia (pesquisadores e universidades) se levantar contra, ou ao menos expressar de forma enfática, tal preocupação. Talvez porque, infelizmente, vários biólogos e veterinários, além dos estudantes dessas profissões, se envolvam com o que consideram um hobby – a criação de animais -, mas que, nesses casos, possui uma grande interface com o tráfico, inclusive internacional das espécies.

Problema de estrutura dos Estados

O repasse aos Estados também não foi tranquilo, já que vários deles não possuem servidores em quantidade suficiente, servidores concursados e mesmo agentes de fiscalização concursados.

Um servidor contratado (e não concursado) terá autonomia para dizer não? Ou esse será o último “não” de seu contrato? Um fiscal comissionado poderá multar alguém que seja influente ou, se o fizer, será exonerado em seguida? Essas são questões cruciais para a isenção e autonomia das atividades autorizativas e de fiscalização. A Lei Complementar n° 140/2011 se omitiu ao não definir condicionantes para esse repasse de competências. Quem sofre é a fauna, mas, afinal, ela não pode falar ou protestar.

A Lei Complementar n° 140/2011 teria sido bem-vinda em um texto que aumentasse a cooperação e delimitasse competências entre os diversos órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e estipulasse critérios mínimos para o repasse e a integração nacional. Porém, fragmentou a gestão de espécies que não observam fronteiras estaduais. Assim, o resultado prático dessa fragmentação é o caos e dificuldade da implantação de uma política nacional de fauna com cooperação entre as diversas esferas. Quem se beneficiou foi quem explora a fauna, mas a biodiversidade e o povo brasileiro perderam.