“Fofofauna” e nada mais: biofobia e consequências da ditadura da beleza nos animais

Vocês se lembram da cantiga “Atirei o pau no gato-to-to, mas o gato-to-to não morreu-rreu-rreu…”? Bem, esses dias eu, que moro muito próximo a uma creche, escutei crianças cantando uma nova versão dessa música. Dizia assim: “Atirei no marimbondo-do-do…”. Achei curioso e fui conversar com meus familiares.

Primeiro, levantamos a hipótese de que a substituição poderia ter sido pontual e temporária: quem sabe algum funcionário da creche tinha acabado de “resolver um probleminha” com uma casa de maribondos naquele mesmo dia e, tendo acompanhado a operação, as crianças encontravam-se “inspiradas”.

Depois, refletimos que talvez seja permanente já que “ninguém mais pode atirar o pau no gato”, uma vez que hoje a ideia de maltratar um bichinho que é tão fofinho e nosso é, além de crime ambiental, impensável. Foi aí que, depois de eu dizer “coitado do marimbondo, por que com ele pode?”, tive a seguinte pergunta direcionada a mim: “Pra que que serve um marimbondo?” como se, por não ter função óbvia e ainda ser feio, a paulada estaria permitida. Mas quem aqui sabe me dizer qual a serventia de um panda? Qual a função de um urso-polar, um elefante, uma girafa, dos leões? Para que servem os coalas?

A fofofauna não é perigosa?

Na direção inversa do que seria “biofilia”, o conceito de “biofobia” gira em torno de sentimentos negativos, como os de medo e nojo, em relação a certos animais selvagens – geralmente invertebrados, como insetos, aranhas e escorpiões, além de serpentes e cobras, sapos, lagartos e lagartixas. A suposta justificativa para a existência da biofobia seria evolutiva: algo que existe por um motivo – pois algumas das espécies desses grupos de animais “oferecem risco” a nós (por mordidas, picadas e/ou ferroadas e veneno/peçonha).

Mas por um acaso é certo afirmar que um urso-polar, girafas, leões e pandas não nos oferecem risco algum? É aqui que a idealização da “fofofauna” começa a dar sinais de suas pontas afiadas: o atrelar sinestésico dos pelos à fofura é humano, mas tem seu lado reducionista por fabricar pobres e irrealistas impressões e expectativas do comportamento das espécies animais. Ora, até mesmo nossos cães podem chegar a ser extremamente agressivos.

Em nosso atual cenário, o apelo emocional que um urso-polar carrega é imensamente maior do que tem ou teria qualquer serpente. E a razão disso baseia-se exclusivamente em um único critério: o padrão do que é bonito e do que não é. E similar ao que é verdadeiro para a ditadura da beleza imposta às mulheres: a mídia é a grande culpada por (mal) acostumar nossos olhares e percepções, esgotando todo o nosso foco para algumas poucas características específicas e fazendo sobrar, para todo o resto, apenas nosso estranhamento.

Não estou tentando dizer que pelos e ferrões são a mesma coisa e que por isso devem ser vistos e tratados como tal – pois isso seria, obviamente, um perigo para nossos dedos sensíveis. Estou advogando pelos benefícios que uma mente aberta sobre a multiplicidade das formas, tamanhos, cores e texturas pode trazer à nossa visão sobre a interconectividade intrínseca e vital da grande diversidade biológica que tem o nosso planeta.

Um marimbondo pode não ser a criatura mais encantadora do mundo e tá tudo bem. Mas, assim como as das borboletas coloridas, as suas quatro finas e leves asas membranosas evoluíram por milhares de anos para funcionarem perfeitamente e isso é lindo. Aliás, é incrível. Existem vários outros adjetivos na língua portuguesa para descrever e dar valor às coisas vivas e não vivas e nem tudo tem que ser lindo e/ou apenas lindo. Tudo é tão maior que isso. As formas de vida presentes em todo lugar são tão numerosas e tão interessantes que a simplificação do olhar a uma valoração estética apenas chega a ser uma ofensa, um desperdício cognitivo.

A verdade é que entre as “serventias” e os “perigos” de dois animais como um urso-polar e uma serpente não existem grandes abismos. Existe simplesmente o relativismo: critérios incomparáveis por serem dependentes de cada contexto e situação. Cada um tem seu nicho biológico – termo que envolve todas as interações bióticas e abióticas as quais aquele ser cria e nas quais ele participa.

O papel de cada de espécie é, em primeiro lugar, existir. A partir da sua existência, sua função conseguinte é interagir, intencional e não intencionalmente, direta ou indiretamente, com o ambiente em que ela se insere, modificando-o, e com os bichos outros com os quais divide espaço, através de competições, predações, mutualismos, parasitismos, comensalismos, cooperações… Nesse sentido e sob essa mesma lei, absolutamente todos os seres vivos que existem no mundo são perfeitamente iguais. E aqui estamos incluídos eu, você e o marimbondo.

Marimbondo este que poderia, se pudesse, perguntar: pra que que serve um ser humano?

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