Por Andreas Kindel
Biólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
estradas@faunanews.com.br
Essa, aparentemente, é uma notícia boa, mas na verdade quero compartilhar uma preocupação e uma dica, que adoraria ver transformada em uma recomendação ou, melhor ainda, exigência.
Por trabalhar com fauna atropelada, eu tenho o hábito de ficar olhando pra pista e contar as carcaças que vão aparecendo ao longo do trajeto. Faço isso mesmo quando estou em viagens com a família. E sempre me chamou a atenção a raridade das carcaças em estradas concedidas, sobretudo aquelas com múltiplas pistas.
As hipóteses mais óbvias que vinham à mente eram: a situação está tão ruim que os animais nem tentam atravessar a rodovia, por causa do elevado trafego, ou ao longo das décadas de operação daquela estrada já tinham morrido tantos animais que as suas populações estariam muito pequenas, não existindo, portanto, indivíduos para atravessar. Uma terceira alternativa é que a mudança no uso do solo no entorno das estradas foi tão intensa que pouco restou de fauna que quisesse ou precisasse atravessar a rodovia.
Desconheço estudos publicados comparando a mortalidade de fauna em rodovias antes e depois da concessão. Por isso me arrependo de não ter percebido em tempo a oportunidade oferecida pela interrupção no contrato de concessão da BR-290 no trecho de aproximadamente 100 quilômetros conhecido como Freeway, entre Porto Alegre e Osório, no Rio Grande do Sul. Durante todo o segundo semestre de 2018, não houve concessionária, cobrança de pedágio e, obviamente, também foram cessados os serviços de manutenção em todo esse trecho. Logo após a interrupção da concessão, como num passe de mágica, a mesma tragédia recorrentemente observada em tantas outras estradas se acumulou no asfalto: dezenas de corpos de graxains, gambás, gatos-do-mato, tamanduás, ouriços, lagartos e animais de outras tantas espécies da fauna de médio porte que ainda restam no Rio Grande do Sul e que são visíveis de um carro a 100 km por hora.
Ainda que eu não tenha feito um estudo sistemático e rigoroso, ficou claro que a explicação mais provável para a ausência observada de fauna de médio-grande porte nessas rodovias sob concessão é muito simples: as carcaças são retiradas pelas equipes de manutenção.
Essa prática tem uma justificativa primária óbvia que é evitar acidentes decorrentes da mudança de trajetória dos veículos para evitar passar sobre uma carcaça e não cabe discuti-la. Contudo, essas carcaças não podem simplesmente desaparecer das estatísticas. É fundamental que cada carcaça removida tenha a sua identificação e localização registrada, permitindo avaliar ao longo do tempo quantos morrem e onde morrem mais, assim como avaliar se medidas de mitigação implantadas vêm tendo os resultados esperados.
Com frequência, os monitoramentos de fauna atropelada nessas estradas são feitos por equipes de consultoria contratadas que as percorrem com intervalos que variam de semanal a trimestral. Se a fauna removida pelas equipes de manutenção não for comunicada, a percepção sobre o impacto dessas estradas e o eventual planejamento da sua mitigação estarão totalmente enviesados.
Infelizmente, não tive sucesso na tentativa de acessar tanto os relatórios das consultorias como das equipes de manutenção nos sites de algumas das concessionárias, dos órgãos de gestão ou mesmo da ANTT, (Agência Nacional de Transportes Terrestres), tanto em nível federal como em alguns Estados. Ou não existem as informações ou os caminhos para encontrá-las são tão complexos que eu desisti de procurar. Com isso, não consigo afirmar em que medida essa fauna está sendo invisibilizada, apesar de ela continuar morrendo.
No entanto, em pelo menos duas rodovias sei que a fauna removida é registrada (ES-060 no Espírito Santo e BR-040 entre Juiz de Fora e Rio de Janeiro) e em São Paulo, a Decisão de Diretoria Nº 141/2018/I, de 14 de agosto de 2018, da Cetesb determina o registro das carcaças removidas e envio de relatórios e orientações sobre as formas de destino desta fauna. Não existem dúvidas, portanto, de que essa prática deve e pode ser adotada.
Naquelas rodovias em que a fauna removida pelas equipes de manutenção não é registrada, é urgente que isso seja feito. Assim como também é urgente garantir, em contrato, que as concessionárias disponibilizem em seus portais todos os instrumentos e relatórios produzidos pela sua gestão ambiental (e das demais gestões, por que não?). Procedimentos como esse facilitariam bastante o acompanhamento social das concessões. Exemplos dessa prática são encontrados em várias das gestões ambientais de obras do DNIT.
As concessões de novas rodovias estão na pauta de todos os governos. É urgente sabermos se a fauna nessas estradas deixou de morrer ou apenas deixou de ser observada.