
Por Andreas Kindel
Biólogo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
transportes@faunanews.com.br
Toda estrutura linear, seja um rio ou uma estrada, em qualquer paisagem, desempenhará pelo menos três funções para os organismos: barreira, habitat ou corredor. Estradas são deliberadamente construídas para cumprirem a função de corredor, facilitando a movimentação de pessoas e bens entre origem e destino.
Nesta semana, fui particularmente tocado por uma notícia publicada aqui no Fauna News de um dos bens transportados nessas vias: 1.459 jabutis, amontoados em sacos no porta-malas de um carro, além de 17 aves, foram apreendidos em Minas Gerais.

Não existe tráfico de fauna, em particular nessa escala, sem “estradas” (por terra, água ou ar). Fechar ou não construir estradas, apenas por essa razão, não é solução. Mas estradas são gargalos previsíveis por onde o tráfico de fauna necessariamente será obrigado a passar. Uma forma elementar de combatê-lo, portanto, é intensificar e qualificar a fiscalização nessas estruturas. Com alguma ginástica jurídica e muita dedicação, é possível responsabilizar inúmeras instituições e cargos (= pessoas) para assumirem de forma articulada uma política, e não ações isoladas e descontinuadas, de controle dessa circulação. Contudo, além de gerar outro desafio (o que fazer com a fauna apreendida?), para qualquer estrada que receber uma atenção maior da fiscalização, existirá sempre outra rota alternativa para os infratores.
Para mim está claro que o caminho para o controle do tráfico de fauna não está na existência ou gestão do corredor. Não dá pra eliminar as estradas e a intensificação e qualificação da fiscalização é uma ilusão. Mas o caminho tampouco está na gestão da origem, ou seja, no extremo da estrada onde se encontram os fornecedores.
Uma das soluções alternativas recorrentemente defendidas, inclusive por instituições de gestão da biodiversidade e não só por contraventores, é a legalização do comércio de fauna a partir de criatórios autorizados. Trata-se de uma estratégia sem fundamento, pois não trás nenhuma contribuição para a preservação/conservação da biodiversidade e só é viável economicamente com o estímulo e a perpetuação da tortura animal em cativeiro.
A única esperança duradoura para a fauna é atuarmos sobre o destino dessa estrada, os consumidores, e isso passa pelo entendimento das suas motivações para adquirirem os animais. Sem o entendimento das necessidades subjacentes que estimulam as pessoas a capturarem ou comprarem a fauna, sem o entendimento de onde (geográfica e socialmente) estão concentradas distintas motivações, nossas ações serão completamente inócuas. Obviamente, o destino (consumidores) está conectado à origem (fornecedores) pelo corredor (estradas) e a atuação nestes outros dois elementos da rede não pode ser abandonada. Mas são abordagens complementares. Não podem ser a prioridade e nem aceitas como suficientes. São a parte “fácil” da atuação sobre o problema do tráfico.
Obviamente que o “fácil” está sendo utilizado aqui de forma relativa; todo mundo que atua nessas frentes ou que acompanha os relatos nas colunas Na Linha de Frente, Universo Cetras e Segunda Chance aqui no Fauna News sabe o quão perigosas, dolorosas e onerosas são essas ações. Difícil mesmo é mudar as atitudes das pessoas que alimentam essa atividade.
É difícil porque sua distribuição é difusa, as razões para adquirirem são complexas e o esforço de desestímulo deve ser continuado e articulado entre múltiplas instituições. É difícil porque atua diretamente sobre os desejos e necessidades das pessoas. Mas se não encararmos esse desafio, não há esperança alguma para essa fauna. Mais e mais animais serão capturados, torturados, encarcerados, mortos, soltos irregular e inadequadamente, afetando populações e ambientes de origem e destino. Estradas, no caso do tráfego, são apenas corredores. Mecanismos indiretos de ameaça à fauna.
Vocês devem estar se perguntando por que eu fiquei tão chocado com a imagem dos jabutis amontoados e porque trouxe o tema do tráfico para esta coluna.
Simplesmente porque eu tive um jabuti na minha infância. E mais de mil outras crianças, como eu, provavelmente receberiam de presente esses jabutis, caso não fossem apreendidos, estimulando e perpetuando esse hábito. Se crianças e seus pais não forem sensibilizados para a trágica trajetória desses animais, antes e depois da posse, imagens como a que ilustra essa coluna serão recorrentes e, por serem recorrentes, se tornarão invisíveis para a sociedade.

– Leia outros artigos da coluna FAUNA E TRANSPORTES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)