Entomologia quaresmal

Na Quaresma, os insetos também estão presentes nas narrativas que envolvem o período.

Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural.
Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera e Lepidoptera, sendo que recentemente vem se dedicando ao estudo da presença simbólica de animais nas manifestações culturais, a chamada zoologia cultural. Com mais de cem artigos científicos publicados, cerca de 200 trabalhos apresentados em congressos científicos, nove livros editados e sete capítulos de livros, orientou dez dissertações de mestrado e três teses de doutorado. É idealizador e editor do periódico A Bruxa, uma revista de biologia cultural, e do fanzine sobre ciência Homem-Leoa. É também o criador e organizador do Colóquio de Zoologia Cultural e da Mostra de Biologia Cultural.

19 de março de 2025

Estudar insetos nos dá um sem-número de possibilidades. Face ao gigantismo, à complexidade e à diversidade do grupo, é até difícil definir o que seria a Entomologia, o ramo da Ciência dedicado ao estudo dos insetos. A definição clássica e histórica, por exemplo, abarcava também animais aparentados dos insetos, como miriápodos, aracnídeos e crustáceos, tanto que, ainda hoje, muitas revistas que publicam trabalhos sobre Entomologia aceitam também artigos sobre esses outros artrópodes.

No campo do estudo dos insetos, pode-se trabalhar com, por exemplo, pragas das plantações, dentro da chamada Entomologia agrícola; com vetores de doenças ou outros causadores de problemas de saúde, na Entomologia médico-veterinária; com insetos de plantios arbóreos, na Entomologia florestal; com insetos das águas, na Entomologia aquática; com insetos das cidades, na Entomologia urbana; com insetos usados para investigação criminal, na Entomologia forense. Isso além de estudos sobre ecologia, comportamento, taxonomia, biogeografia, morfologia, etc., representando uma pequena parcela das possibilidades de trabalhos e abordagens em Entomologia. Por sinal, muitas delas já experimentadas por aqui. Ah, sim, o leitor mais frequente deste espaço já deve ter percebido que tenho uma acentuada queda pelos temas voltados à presença de insetos nas manifestações da nossa cultura, a Entomologia cultural.

Diante de tal rosário de “entomologias”, fico absolutamente tentado a, na base da brincadeira, criar um termo novo, que dá título a este papo de hoje: Entomologia quaresmal. Isso porque estamos na Quaresma e eu simplesmente adoro lendas, causos e narrativas desse tão peculiar período do calendário pós-carnavalesco.

Especialmente significativa para os católicos, a Quaresma [1] é o período do calendário cristão que começa na Quarta-feira de Cinzas e termina nas vésperas do Domingo de Páscoa. Dentro da liturgia cristã, é um tempo de reflexão, penitência e preparação espiritual para celebrar a ressurreição de Jesus Cristo na Páscoa. Durante esse período, muitos praticam o jejum, a abstinência de consumo de carne, a oração e a caridade, como forma de aproximação a Deus e renovação de fé. O tempo de Quaresma simboliza os 40 dias em que Jesus teria passado no deserto da Judéia, jejuando, peregrinando e sendo tentado por demônios.

A Quaresma é vista como um período espiritualmente intenso, de forte simbolismo ligado ao “bem” e ao “mal”. No Brasil, há quem acredite que, durante esse tempo, forças malignas ou sobrenaturais ficam mais ativas e poderosas devido à vulnerabilidade resultante do jejum, das práticas religiosas em si e da busca pela purificação espiritual das pessoas, o que poderia despertar ou atrair a atenção de seres fantasmagóricos.

Como em muitas igrejas há o costume simbólico de, na Quaresma, se cobrir com pano roxo imagens de santos e crucifixos, representando luto, penitência e introspecção pela morte de Jesus, muitos percebem nisso um sintoma de fraqueza. Afinal, sem “enxergar”, por causa da cobertura, os santos não têm como nos defender do perigo, o que tornaria mais poderosas as criaturas sobrenaturais, tipo lobisomens e mulas-sem-cabeça, dentre outras [2]. Talvez minha predileção pelo período tenha a ver exatamente com isso. Além de eu me amarrar nas estórias do sobrenatural, muitas das criaturas desse campo têm inspiração nos animais reais, o que brilha os olhos do zoólogo aqui.

Narrativas com insetos

Mas será que há narrativas que incluem insetos no Brasil? Que os insetos são bem relacionados à religiosidade popular, isso é um fato já demonstrado por aqui. Mesmo que esses pequenos seres de seis pernas e quase sempre com asas não sejam lá muito queridos pelo público em geral, foram super bem recolhidos pela bondosa Compadecida [3] e pelo próprio Jesus, especialmente na fase de menino [4].

Em Portugal, por exemplo, há quem fale das “bichas da Quaresma” [5]. São lagartas de mariposas (integrantes da ordem dos lepidópteros – Lepidoptera) que, hóspedes dos pinheiros, se tornam tão abundantes no período que descem das árvores e tomam o chão, causando repulsa e, por serem urticantes, algum dano eventual.

Respondendo agora à pergunta de dois parágrafos acima, sim, há algumas narrativas folclóricas que conectam insetos ao período da Quaresma no Brasil, embora não sejam tão amplamente conhecidas quanto aquelas que envolvem animais maiores ou seres sobrenaturais. Essas histórias com insetos geralmente têm um caráter simbólico ou moralizante.

Há, por exemplo, quem classifique as moscas, mosquitos e outros integrantes da ordem dos dípteros (Diptera) como um “castigo divino”. Como supostamente esses insetos se fariam mais presentes durante a Quaresma, ao menos na percepção popular, isso seria interpretado como um lembrete para que as pessoas expiem seus pecados e façam a devida penitência. Tais insetos seriam, então, um símbolo de desconforto e incômodo, associados ao sacrifício e à reflexão que o período pede.

Em outras narrativas que escutei Brasil afora, especialmente nas áreas mais interioranas, fala-se que as formigas, populares insetos da ordem dos himenópteros (Hymenoptera), seriam um reforço simbólico para se exaltar a paciência e o trabalho contínuo, necessários para se superar as dificuldades do período quaresmal. Algumas versões dizem que, nessa época, enxames poderiam aparecer como um aviso para que as pessoas fossem diligentes em seus deveres espirituais, assim como as formigas são em seu trabalho coletivo.

Também tenho escutado que na Quaresma os bichos classificados como mais “nojentos” teimam em invadir nossas casas, contribuindo para uma maior perturbação, como se já não tivéssemos problemas suficientes. Dentre os mais destacados estariam, é claro, as onipresentes baratas, famigerados insetos da ordem dos blatódeos (Blattodea). Ontem, o prédio em que moro foi dedetizado e, diante da quantidade de baratas que vi, é realmente tentador acreditar na percepção popular. Evidências anedóticas e suas tentações…

Bom, fiquei feliz em poder abordar um pouco sobre essa ligação dos insetos com o período de que tanto gosto. Pode ser que tenha mesmo mais inseto na Quaresma, pois ainda está muito quente e úmido, condição que esses bichinhos adoram. Além disso, como ainda é forte, especialmente no interior, a crença da necessidade de um recolhimento maior nesta época do ano, as pessoas acabam ficando mais tempo em casa, o que aumentaria a chance de se encontrar bichos que, provavelmente, estão por aqui a maior parte do tempo. Vai se saber.

Aos que se aterrorizam com a abundância de moscas, mosquitos, formigas e baratas na Quaresma, resta um consolo: daqui a pouco vai chegar a Páscoa e tudo voltará ao normal. Ou não.

Até mês que vem.

Referências

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Sobre o autor / Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural. Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera […]