Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
Nesta nossa conversa relativa ao mês de março, abordarei um pouco sobre o Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural, do qual sou fundador e é meu local de lotação. O Labeuc, como nós chamamos em sua forma abreviada, teve sua criação aprovada na 62ª reunião de colegiado do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), ocorrida em 26 de janeiro de 2016 [1]. Foi criado dividindo espaço físico e equipamentos com o Laboratório de Insetos Aquáticos (Labiaqua), do qual é originário e também fui fundador, isso lá nos tempos antigos do final do século passado. Ambos estão situados na sala 404 do Prédio do IBIO/CCET, na Avenida Pasteur, 458, bairro da Urca, na concorrida e cobiçada zona sul carioca.
A motivação para a proposta de criação de um novo laboratório foi calcada no fato de minha carreira acadêmica ter, aos poucos e com o tempo, deixado de ser centrada nos insetos aquáticos (mais especificamente na ordem Ephemeroptera), embora eles permaneçam fortes em meu coração – uma breve olhada nos meus textos anteriores aqui no Fauna News não me deixa mentir. Passei, assim, a atuar em dois campos aparentemente distintos, mas que, reunidos, caminham muito bem: a Entomologia Urbana [2] [3] [4] [5] [6] e a Zoologia Cultural [7] [8] [9]. Logo, nada mais justo do que abrigar os novos projetos e publicações sob o teto de um laboratório com nome mais adequado aos temas.
No que se refere à Entomologia Urbana, eu e nossa equipe estudamos a presença de determinados grupos de insetos perto das cidades, especialmente, mas de forma não exclusiva, o conhecido como Auchenorrhyncha, setor dentro da ordem Hemiptera que inclui as cigarras, cigarrinhas e aparentados. Interessa-nos sobremaneira a ocorrência de insetos em plantas hospedeiras, nativas ou introduzidas, nas praças, canteiros e mesmo à beira das estradas no entorno urbano e suburbano. Dentro desse aspecto, há sempre muito a se observar, com possíveis novos registros e ocorrências bem ali pertinho, diante de nossos olhos. Esse projeto está institucionalmente cadastrado junto ao setor de pesquisa da universidade.
Deve-se destacar que estudos utilizando insetos atraídos por luzes artificiais são um dos carros-chefes da produção científica do laboratório [5] [6]. Nossos focos de coleta costumam ser os exemplares que ficam aprisionados em lustres e globos de iluminação, tanto em residências (como, por exemplo, os lustres de nossas salas, quartos e varandas, ou mesmo na garagem dos prédios de apartamentos) quanto em estabelecimentos comerciais, especialmente os que margeiam as rodovias. Com isso, tentamos dar certo aproveitamento científico a um material que seria descartado. Já conseguimos, assim, exemplares taxonomicamente muito interessantes. Além disso, mantendo regularidade na inspeção dos locais de coleta, é possível se inferir sobre a ocorrência de flutuações populacionais de determinadas espécies.
Já em relação à Zoologia Cultural, o objetivo é o inventário da presença simbólica dos animais, quer sejam insetos ou quaisquer outros, nas distintas manifestações da cultura humana. Além, é claro, de suas inúmeras possibilidades de utilização no ensino, na divulgação científica e na preservação da biodiversidade [10] [11]. Dentro desse projeto, procura-se enriquecer os estudos da área e proporcionar uma abordagem diferente e informal na análise biológica. As atividades dessa linha estão devidamente cadastradas nos setores de pesquisa e de extensão da universidade, respectivamente relacionadas à produção científica em si e à divulgação pública dos conteúdos gerados.
Ter interesse em insetos e estar aberto às possibilidades que a associação entre Ciência e Cultura traz são requisitos fundamentais para se fazer parte da equipe do Labeuc. Não há distinção clara entre quem é participante de um ou outro projeto, com todos podendo atuar em ambos indistintamente, de modo até incentivado. Com isso, além do exercício ao trabalho acadêmico mais formal em Entomologia, nossos estudantes reúnem também uma bagagem em termos de popularização da Ciência, valorizando diferentes saberes e se comunicando com o público externo à universidade de variadas formas. Consideramos que ambos os projetos atuam de maneira complementar, percepção que é compartilhada por todos aqueles que fazem parte da equipe atual.
Como Aline Fernandes Baffa, bacharela em Ciências Biológicas e mestra em Biodiversidade Neotropical, com ambos os trabalhos de conclusão, desenvolvidos em parceria com a Fiocruz, versando sobre a caracterização morfológica de espermatozoides de barbeiros (ordem Hemiptera, família Reduviidae, subfamília Triatominae). Como forma de ampliar o leque de possibilidades profissionais, Aline está cursando na Unirio uma segunda graduação, a Licenciatura em Ciências da Natureza, atuando na expansão e popularização da Zoologia Cultural, através em um fanzine do Labeuc, de nome Homem-Leoa [12], que tem pretensão de falar sobre Ciência de modo lúdico e atrativo. Segundo Aline, essa área de pesquisa tem enorme afinidade com a educação, uma relação que muito lhe é preciosa e que ela pretende explorar bastante em práticas pedagógicas e trabalhos futuros.
Bacharela e licenciada em Ciências Biológicas, mestra em Divulgação Científica e doutoranda na mesma área, pela Fiocruz, Virgínia Codá desenvolveu monografia de bacharelado estudando as larvas de borrachudos (ordem Diptera, família Simuliidae) em plena megalópole carioca. Ao longo de sua formação, sentiu falta da possibilidade de escrever de forma pessoal, sem parecer, nas suas palavras, “um robô do método científico”. Virgínia considera que foi graças aos trabalhos desenvolvidos no Labeuc que pôde desbravar novos campos, conhecer a divulgação científica e se encontrar na área de comunicação da Ciência. Como, por exemplo, o que apresentou no III Colóquio de Zoologia Cultural (2018), em que aborda o uso de animais estilizados (insetos, na maioria) nos panfletos promocionais do “Lisb-On Jardim Sonoro”, festival musical realizado em 2018, em Lisboa, Portugal [13]. Trabalhos como esse a prepararam bem para o meio acadêmico da divulgação científica, fazendo com que não sentisse grandes dificuldades quando iniciou tanto o mestrado quanto o doutorado na área. Mais do que teoria, o Labeuc, ainda segundo Virgínia, permitiu que ela fizesse comunicação científica na prática, olho no olho com o público, ajudando a entender as perspectivas das diferentes pessoas e juntando prática à teoria.
Licenciado em Ciências Biológicas, Vinícius de Menezes Estrela Santiago teve a oportunidade de vivenciar ações de divulgação científica através de atividades extensionistas da Unirio e como mediador do Museu de Vida, da Fiocruz. Essas experiências possibilitaram que sua visão sobre ensino e pesquisa se transformasse. Por conta dessas atividades, Vinícius percebeu a necessidade de que a pesquisa que ele realiza chegue, de alguma forma, à população através de uma linguagem democrática e acessível. Além disso, considera que, como licenciado, precisa estar frequentemente se atualizando em relação à cultura popular para sempre conseguir, de forma lúdica, levar as informações e assuntos importantes à formação dos seus futuros alunos. Vinícius exemplifica mencionando um trabalho que apresentou em evento científico, acerca da lendária “Flor de Udumbara”, considerada uma manifestação cultural importante no budismo, mas que, na realidade, representa ovos de insetos da ordem Neuroptera [14]. Atualmente, Vinícius cursa o mestrado em Entomologia na Universidade Federal de Viçosa (UFV), trabalhando com morfologia do aparelho reprodutor de cigarrinhas da família Cicadellidae, dentre outras.
Também atualmente trabalhando com morfologia reprodutiva de cigarrinhas no mestrado da UFV, o bacharel Rômulo Fagundes Sodré defendeu monografia de graduação sobre morfologia descritiva da fêmea de duas espécies de Cicadellidae [15]. Foi a última defesa presencial de trabalho monográfico de integrante do Labeuc, posto que, logo depois, a pandemia de Covid-19 mudou a rotina acadêmica, bem como o planeta como um todo.
Dentre os integrantes do Labeuc, no que se refere a trabalho desenvolvido com insetos, a bacharela em Ciências Biológicas Regina Esther Maciel Teixeira Prazeres de Assis foi a primeira a ter que enfrentar as consequências acadêmicas do novo vírus, posto que sua monografia foi inteiramente desenvolvida dentro do período pandêmico. De início, a ideia era pesquisar a biologia e a taxonomia de uma espécie de cigarrinha da família Aetalionidae. Com a impossibilidade de acesso aos espaços da universidade para dar andamento ao trabalho taxonômico, foi necessária a mudança de tema. E aí, segundo Regina, a Zoologia Cultural se ofereceu como a opção mais acertada para o cumprimento dos prazos acadêmicos. Assim, desenvolveu, de forma remota, um trabalho sobre alguns animais (quase todos insetos) presentes na animação “Coraline e o Mundo Secreto”, de 2009 [16]. A natural frustração de vivenciar uma mudança forçada de tema de trabalho, ainda mais em um momento de crise planetária, foi superada com a realização de uma bela pesquisa, que até já resultou em publicação [17].
Ainda com a pandemia em curso (infelizmente, a #pandemianaoacabou), mas com o retorno paulatino das atividades universitárias, a próxima integrante do Labeuc a defender monografia de graduação poderá ser Angeliane Oliveira Santos, que vem recolhendo insetos acumulados em lustres, em ação individual e procurando seguir todas as medidas possíveis de prevenção. Se a defesa será em modo presencial ou remoto, ainda não dá para saber. Como Angeliane também desenvolve estudos no campo da Zoologia Cultural [18], uma eventual mudança de tema de monografia, em caso de necessidade, não será traumática.
Em resumo, todo o funcionamento do Labeuc é baseado no desenvolvimento concomitante de atividades acadêmicas de pesquisa e extensão, sempre se pensando na integração de saberes. Para a bióloga Luci Boa Nova Coelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestra em Entomologia e doutora em Zoologia, e que participou da criação do Labeuc, essa integração é benéfica para todos os autores envolvidos. Tendo desenvolvido estágio pós-doutoral na Unirio antes da criação oficial, mas já em meio aos alicerces que sustentam os ideais do Labeuc, Luci participa ativamente de todos os projetos do laboratório, desempenhando papel fundamental na orientação dos estudantes e na coordenação das atividades. Conforme ela sempre faz questão de realçar, quando a equipe realiza alguma atividade de campo para obtenção de material entomológico, tenta-se aproveitar ao máximo o tempo para se investigar as histórias culturais da localidade, buscando pontes de ligação com a Ciência. Essas informações levantadas a cada saída de campo acabam orientando as próximas atividades, tanto as de pesquisa entomológica como as voltadas à divulgação científica.
Naturalmente, devido à pandemia, as atividades de campo do Labeuc, bem como suas ações de divulgação científica, tiveram que ser paralisadas. Aí o que se teve foi a migração dos eventos para o modo remoto, algo imposto pela realidade. O montante de trabalho envolvido nessa adequação é enorme e pode, de forma resumida, ser medido pelo quantitativo: do início da pandemia até agora foram organizadas quatro edições da Mostra de Biologia Cultural [19] [20] [21] [22], no Facebook, e duas do Colóquio de Zoologia Cultural, no YouTube [23], com muitos trabalhos versando sobre insetos. Todo o conteúdo desses eventos permanece disponível on-line. Foi a forma que encontramos para a continuidade dos trabalhos.
Ainda estamos em funcionamento remoto. Mas com esperanças renovadas de que o retorno às atividades presenciais, especialmente as saídas de campo, não vai tardar. E aí nos depararemos com a dura realidade do sucateamento na geração de conhecimento no Brasil, algo que a pandemia pode até ter evidenciado, mas está longe ser a única responsável. Todas as atividades de campo e de divulgação realizadas pelo Labeuc são bancadas com recursos particulares dos pesquisadores e estudantes, inclusive veículos de transporte e combustível. Faz-se isso motivado unicamente pelo amor à pesquisa e pela vontade de se falar de Ciência a todos os públicos, de modo que todos possam compreender. Porém, na época do retorno provavelmente iremos nos deparar com uma gasolina a mais de dez reais o litro! É, o gigante pode até ter acordado por causa de 20 centavos, mas estrategicamente voltou a cair em sono profundo logo depois. Precisamos urgentemente que o Brasil acorde.
Referências
[1] Da-Silva, E.R. et al. 2016. Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural explicando o logotipo. In: Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. (ed.). I Colóquio de Zoologia Cultural – Livro do evento. Perse, p. 129-135.
[2] Da-Silva, E.R. & Coelho, L.B.N. 2015. Singhiella simplex (Singh) (Hemiptera: Aleyrodidae) in an urban area of Rio de Janeiro City, Brazil. International Journal of Pure and Applied Zoology 3(2): 173-175.
[3] Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. 2015. Registro de dano de Gargaphia lunulata (Insecta: Hemiptera: Tingidae) em Passiflora edulis (Malpighiales: Passifloraceae) e Arachis repens (Fabales: Fabaceae) em uma área urbana do Rio de Janeiro. Agrarian Academy 2(3): 90-100.
[4] Da-Silva, E.R. et al. 2016. Entomologia urbana: registros novos e adicionais para os municípios do Rio de Janeiro e de Piraí, Brasil. Revista Científica Semana Acadêmica 79: 1-13.
[5] Da-Silva, E.R. et al. 2016. Flutuação populacional de Singhiella simplex (Hemiptera: Aleyrodidae) em ambiente urbano do município do Rio de Janeiro. In: Da-Silva, E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Unirio, p. 101-108.
[6] Da-Silva, E.R. et al. 2016. Population dynamics of Cicadellidae and Delphacidae (Hemiptera) in an urban environment of the Rio de Janeiro City. In: Da-Silva, E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Unirio, p. 91-100.
[7] Da-Silva, E.R. et al. 2014. A Zoologia de “Sete Soldados da Vitória”: análise dos animais presentes na obra e sua possível utilização para fins didáticos. Enciclopédia Biosfera 10(18): 3502-3525.
[8] Da-Silva, E.R. et al. 2014. Marvel and DC characters inspired by insects. Research Expo International Multidisciplinary Research Journal 4(3): 10-36.
[9] Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. 2015. Análise de “Minúsculos: o Filme” à luz da biologia animal. In: Cassab, M. et al. (ed.). Anais do Encontro Regional de Ensino de Biologia – Regional 4. Universidade Federal de Juiz de Fora, 13 p.
[10] Da-Silva, E.R. & Coelho, L.B.N. 2016. Zoologia Cultural, com ênfase na presença de personagens inspirados em artrópodes na cultura pop. In: Da-Silva, E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Unirio, p. 24-34. [11] Da-Silva, E.R. 2018. Retrospectiva 2018: o ano de consolidação da Biologia Cultural – e jamais isso foi tão necessário. A Bruxa 2(6): 1-8.
[12] https://www.youtube.com/watch?v=wL6yRmhygyc&list=PLVk9Yf7CmhR19LFado_jraLBk3EykKRsl&index=18
[13] Codá, V. 2018. Lisb-On Jardim Sonoro: a zoologia como ferramenta na propaganda de um festival de música. In: Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. (ed.). III Colóquio de Zoologia Cultural – Livro do evento, p. 124-124. A Bruxa 2 (especial 3): 188 p.
[14] https://www.youtube.com/watch?v=BY2WVCjleC4&t=30s
[15] Sodré, R.F. 2019. Redescrição e diferenciação morfológica da fêmea de duas espécies simpátricas de Ciminius Metcalf & Bruner 1936 (Hemiptera: Cicadellidae). Monografia (Bacharelado em Ciências Biológicas), Unirio.
[16] Assis, R.E.M.T.P. 2021. Análise da representação dos protostômios no filme “Coraline e o Mundo Secreto” com base em características zoológico-culturais. Monografia (Bacharelado em Ciências Biológicas), Unirio.
[17] https://www.revistaabruxa.com/_files/ugd/b05672_13252833e80f467984df2e6b0e15d46a.pdf
[18] Santos, A.O. & Da-Silva, E.R. 2020. Causos animais na Quaresma de Santana de Parnaíba, Estado de São Paulo. In: Da-Silva, E.R. & Coelho, L.B.N. (ed.). IV Mostra de Biologia Cultural: da Quaresma à Páscoa – Livro de resumos, p. 35-26. Bruxa 4(especial 2): 1-38.
[19] https://www.facebook.com/events/2846449852103760
[20] https://www.facebook.com/events/635962393623915
[21] https://www.facebook.com/events/316544746109540
[22] https://www.facebook.com/events/723055631677699
[23] https://www.youtube.com/channel/UCa_mX9UDNfHBUcJMAez07VA/videos
– Leia outros artigos da coluna INVERTEBRADOS
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).