“Deseducação” ambiental: comercialização legal de macacos como pets

“Ninguém manda ter animal silvestre em casa.” e “Será que o macaco está bem?” foram alguns dos comentários no post do perfil Gossip do Dia no Instagram, um dos primeiros a noticiar que funkeira MC Mirella havia aparecido com um machucado inflamado na testa, causado por um ataque do seu macaco-prego (comprado e mantido legalmente). Através de um comentário, a famosa tentou explicar: “Gente vocês postam como se ele tivesse culpa!!! Foi BRINCANDO. Ele não tem culpa de nada! Podia acontecer, como acontece com cachorro, gato…”.

É verdade. Assim como macacos (animais selvagens), cachorros e gatos (animais domésticos) também podem morder e arranhar, mas nada é assim tão simples. A domesticação é um processo longo de evolução conjunta: nós convivemos com cachorros e gatos dentro de nossos lares há milhares de anos. Esses animais entendem nossos gestos de apontar, a maioria entende muito bem a palavra “não” e há quem diga que eles são capazes de entender nossas palavras e frases, até sentimentos de tristeza profunda. Eles nos conhecem.

O mesmo não é verdade para nossa relação com os macacos-prego. Um movimento brusco, uma mudança no tom de voz, tudo e qualquer coisa pode ser encarada como ameaça. Da mesma forma, é difícil para a gente identificar se e quando aquele animal está “brincando” ou nos “atacando”. E por quê? Porque nós não os conhecemos. E é aí que está parte do abismo entre os animais domésticos e os animais selvagens. Macacos-prego não são bons pets e não é só porque eles podem morder.

A presença de famosos aparecendo na mídia expondo macacos-prego criados como animal de estimação é maléfica, pois romantiza a prática, estimula a deseducação e gera demanda para o comércio. Mas também é um veículo pelo qual se pode acessar a realidade; pelo qual saímos da teoria e chegamos à prática: é o lugar de ilustração das consequências. Sabe o tal “ótimo mau exemplo”? Entretanto, é necessário um momento ativo de não esquecimento: vamos “não esquecer” do macaco-prego Twelves do cantor Latino, que fugiu de casa duas vezes e morreu atropelado na terceira, dentro do condomínio fechado em que reside o cantor; vamos “não esquecer” dos macacos-prego da modelo e influencer Nicole Bahls, que bombaram na mídia em seu ensaio newborn, que todo mundo achou fofo, mas que tinham nota fiscal falsa e eram advindos do tráfico; vamos “não esquecer” da mordida que a MC Mirella levou do seu macaco-prego Gucci. Agora, quem será o próximo?

“Conheça o macaco Antônio, que anda de skate e ‘não repete roupa’” foi o título de uma reportagem recentemente publicada no G1, um dos maiores portais de notícias do Brasil.

No subtítulo, é destacado o fato de o animal também estar nas redes sociais, em que seu “cotidiano” é compartilhado para mais de 6,7 mil seguidores. O macaco-prego, comprado por vias legais de um criadouro autorizado (o único no Brasil) se chama Antônio e seu comprador, Eduardo, diz: “Quando ele começa a andar de skate na cidade, não passa despercebido”, esclarecendo depois que a performance do animal, exibido em público como uma atração, nunca foi forçada. Na entrevista, é citado que Antônio interage (“se dá bem”) também com outros animais, gatos e cachorros, e que em julho ele foi levado em viagem de férias para Gramado (RS).

A Resolução n. 489 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que estabelece critérios gerais para a autorização de uso e manejo, em cativeiro, da fauna silvestre e da fauna exótica, em seu artigo quinto determina:

A propriedade de animais de estimação não se insere em quaisquer das categorias de atividades e empreendimentos tratadas no artigo anterior, sendo vedada a reprodução, a exposição à visitação pública e finalidade diversa à de estimação”.

Ou seja, não há uma especificação sobre a permissão do transporte nacional ou internacional de tais “pets exóticos” para fins outros que não o de compra/venda (por exemplo, o animal ser levado a viagens “de passeio”, como no caso do macaco Antônio) nem para casos de “exposição” que envolvem a exibição do animal em público e na internet (como no caso dos animais do Latino, da Nicole Bahls e da MC Mirella, além, claro, do macaco Antônio, o “skatista”). A resolução esclarece apenas sobre a proibição da exposição à visitação pública (similar ao que ocorre, por exemplo, em zoológicos).

Ou seja, casos como o do macaco-prego Antônio (e o da MC Mirella e o do Latino…) ainda que, difíceis de engolir, seguem impassíveis de serem reparados ou coibidos devido à falta de especificidade na regulamentação legal. Por essas e outras, o comércio e a criação legalizados de macacos como pets continua a cruzar a linha-limite entre “liberdade individual” e “impacto ambiental” causado por propaganda enganosa.

Porque sim, a “deseducação” é o “olho d’água” que dá origem à maioria dos grandes “rios” de problemas socioambientais devastadores que o Brasil enfrenta atualmente.

A proximidade ou contato direto entre macacos e humanos é uma via óbvia de propagação de patógenos e transmissão de doenças. Mas a permissão e, sobretudo, a exibição dessa proximidade como algo legal – além de continuamente propagar desinformações acerca da complexidade fisiológica e psicossocial dos primatas – estimula a demanda de compra e venda desses animais (legal e ilegal – por um “efeito doppelganger do consumidor”) em outras pessoas, diminuindo o envolvimento público em estratégias de conservação das espécies.

Colocando em outras palavras: atualmente, a espécie de macacos-prego que é comercializada legalmente no Brasil (Sapajus nigritus) não está em perigo crítico de extinção, mas e no dia em que estiver? A previsão não é das melhores: “Macaco-prego? Que bicho é esse?” vão perguntar. “Ah tá, MonkeyBoo, Georgie, Twelves…”. Ninguém saberá o nome da espécie, só o nome do pet. Logo os macacos-prego, que um dia foram os maiores responsáveis pela dispersão de sementes e plantio de árvores num dos biomas mais ameaçados do mundo, a Mata Atlântica… Logo os macacos-prego, os primatas mais inteligentes das Américas…

Mas não importa – era fofo. E engraçado. E legalizado. Com a vida selvagem violada e extinta, restará conosco apenas nossa “humanidade” – artificial, solitária, inútil – fadada a consumir, curtir e compartilhar, repetidamente, registros de um tempo em que a gente diminuía aqueles que podiam ser bem maiores. Algo que era grande, selvagem, inteligente, imensamente capaz. E belo. Mas que ninguém nunca conheceu completamente e agora é só fofo – com milhões de curtidas.

Referências

• Artigo (2023): “#capuchinmonkeyson Social Media: A Threat for Species Conservation” Vitória Fernandes Nunes, Priscila F. M. Lopes & Renata Gonçalves Ferreira, Anthrozoös.
• Cartilha “Macaco Não é Pet” – “Uma campanha feita por especialistas” – da Sociedade Brasileira de Primatologia

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Confira o episódio do podcast Silvestres em que a questão da criação de macacos por celebridades é discutida: