Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Em nossos últimos encontros aqui no Aquáticos, tenho buscado discutir um pouco mais sobre os inúmeros desafios existentes para a conservação dos cetáceos (baleias, botos e golfinhos) no ecossistema marinho e como esses desafios se entrelaçam.
Já abordamos sua biologia (e o que faz dos cetáceos particularmente suscetíveis aos crescentes impactos antrópicos) e sobre o ambiente onde vivem (e como seria importante incorporar a natureza dinâmica do ecossistema marinho nas estratégias de conservação).
Foi nesse contexto que introduzi as áreas marinhas protegidas, uma das estratégias de conservação in situ (ou seja, no local onde os animais ocorrem) mais difundidas quando o assunto é a conservação das espécies e dos ecossistemas marinhos.
Antes de recomeçarmos a falar sobre elas, contudo, atento ao o contexto de pós-verdade em que estamos globalmente inseridos e reforço meu ponto de partida: este artigo não tem a pretensão de invalidar as áreas marinhas protegidas como estratégia de conservação ou muito menos de desmerecer os gi-gan-tes-cos esforços que são feitos diariamente nesses espaços que, sem dúvida alguma, são de existência fundamental.
A ideia é repensar sobre elas no que se refere aos cetáceos, buscando entender quais são suas falhas e suas contribuições, quais são os principais desafios para sua efetividade e, assim, incentivar o debate sobre como poderíamos superar tais dificuldades, repensando estratégias e imaginando novas possibilidades nos caminhos da conservação.
As áreas marinhas protegidas são áreas de importância biológica e/ou socioambiental que estão protegidas por lei (conhecidas no Brasil como unidades de conservação) e que estão presentes no ecossistema marinho (se entendendo desde a zona litorânea até o oceano profundo). De forma geral, elas restringem as atividades antrópicas em seus limites (que são ainda majoritariamente fixos no espaço) para fins de conservação.
Tais restrições podem não admitir práticas extrativistas e a presença humana dentro das áreas protegidas (sendo conhecidas no Brasil como unidades de conservação de proteção integral e globalmente como no-take zones) ou permitir a presença humana no seu interior (conhecidas no Brasil como unidades de conservação de uso sustentável no Brasil e globalmente como multiple-use zones). Nessa última, são admitidas principalmente a presença de povos e comunidades tradicionais, bem como suas práticas extrativistas tradicionais, que sabidamente contribuem para a conservação da biodiversidade.
A importância das áreas protegidas consiste, portanto, em salvaguardar o patrimônio biológico e sociocultural existente, garantindo a representação de amostras significativas e ecologicamente viáveis de diferentes espécies, populações, habitat e ecossistemas; e assegurar a manutenção dos modos de vida das comunidades tradicionais nesses espaços.
Frente a imensa perda de biodiversidade que ocorre globalmente, as áreas protegidas são requeridas, inclusive, por acordos internacionais multilaterais como a Convenção da Diversidade Biológica e as metas de Aichi (das quais o Brasil faz parte). O escritor indígena Ailton Krenak provoca dizendo que, para algumas dessas instituições, é como se fosse manter algumas “amostras grátis da Terra”.
Dentre as metas de Aichi, por exemplo, a meta 11 (vinculada ao objetivo estratégico C) definiu que pelo menos 10% das áreas costeiras e marinhas deveriam ser protegidas nas águas jurisdicionais dos países signatários e que elas deveriam ser geridas de maneira eficaz e equitativa, através de um sistema ecologicamente representativo e bem conectado de áreas protegidas (inicialmente a ser cumprido até 2020, mas estendido até 2030).
Entretanto – apesar de amplamente difundidas – a eficácia da maioria das áreas marinhas protegidas é incerta e evidências sugerem que, na maioria das vezes, elas falham em entregar retornos sociais e ecológicos positivos. Além disso, a utilização de metas internacionais (como as de Aichi) poderia levar a criação de “perigosas ilusões de proteção” e revelar políticas públicas insidiosas e/ou áreas-de-papel (paper-parks), ou seja, áreas marinhas protegidas meramente legisladas no papel.
As principais deficiências – que levam as áreas marinhas protegidas a não cumprirem suas metas de conservação – podem ser categorizadas em: i) áreas marinhas protegidas ecologicamente insuficientes (por terem um tamanho muito pequeno ou um design de delimitação espacial deficiente); ii) que são planejadas e/ou gerenciadas de maneira inadequada; iii) que falham devido à degradação dos ecossistemas circundantes; iv) que causam mais danos do que benefícios devido ao deslocamento e consequências não intencionais de manejo; e v) que criam ilusões de proteção quando, de fato, nenhuma proteção está ocorrendo.
Para entender um pouco melhor o que essas deficiências podem significar para a conservação efetiva dos cetáceos, vamos explorar alguns exemplos mundo afora. Para tanto, é importante relembrar que esses mamíferos são considerados predadores de topo altamente móveis, que costumam requer grandes áreas de vida (podendo deslocar-se tanto vertical como horizontalmente no ecossistema marinho) e, ainda, associarem-se a características oceanográficas bem definidas, mas espacialmente dinâmicas.
Alcançar uma maior eficiência nas áreas marinhas protegidas, portanto, também difere de acordo com as metas de conservação, sendo mais difícil em cenários mais complexos (como proteger predadores como os cetáceos em zonas pelágicas dos oceanos) e mais fácil em cenários mais simples (como proteger espécies sedentárias ou habitat fixos como recifes de corais ou montes submarinos).
Um dos exemplos mais emblemáticos de áreas marinhas protegidas ecologicamente insuficientes (em relação a dimensão e ao design inadequado) é o caso envolvendo a vaquita (Phocoena sinus), um pequeno golfinho endêmico do norte do Golfo da Califórnia (no México) e um dos cetáceos mais ameaçados do mundo. A maior ameaça direta a sobrevivência da espécie é a alta mortalidade incidental pela intensa presença de redes de emalhe em seu habitat crítico (uma área de aproximadamente 2.235 km²).
No início da década de 1990 (quando a vaquita era considerada em perigo de extinção/EN – IUCN), houve a criação de uma reserva da biosfera para sua proteção. Contudo, a área protegida se mostrou ineficaz em desacelerar o declínio populacional da espécie, uma vez que seus limites foram desenhados de forma a deixar 40% do habitat crítico da vaquita fora da área protegida.
Assim, em 2005 (quando a vaquita já era considerada há alguns anos como criticamente em perigo de extinção/CR – IUCN), uma área de proteção adicional (Vaquita Refuge) foi estabelecida na região de maior densidade da espécie e a pesca com redes de emalhe foi oficialmente proibida no seu interior. Nos anos seguintes, foi desenvolvido um programa de proteção à vaquita para ser aplicado dentro do refúgio visando eliminar a captura incidental.
Contudo, no início, perdeu-se muito tempo tentando colocar em ordem um sistema de gestão pesqueira mal gerido. A natureza voluntária da participação dos pescadores, o não-cumprimento da proibição e a deficiência da fiscalização por parte das entidades responsáveis limitaram a eficácia do plano e do refúgio.
O que aconteceu com a vaquita nos revela, ainda, as deficiências de áreas marinhas protegidas que são planejadas e/ou gerenciadas de maneira inadequada. Nos mostra, também, a dificuldade de alcançar metas de conservação propostas, quando elas se concentram na preservação da biodiversidade, mas ignoram as necessidades das comunidades humanas afetadas pelas medidas implementadas (como, por exemplo, o impacto econômico negativo sofrido pelos pescadores que atuavam na região).
Assim, independentemente das delimitações territoriais e legislativas de proteção, a pesca ilegal com redes de emalhe segue até os dias de hoje, ameaçando a sobrevivência da vaquita que, em 2019, foi estimada em cerca de 10 indivíduos somente.
De fato, o não envolvimento das partes interessadas no processo de planejamento e de tomada de decisões (incluindo representações desiguais entre as partes e a imposição de decisões de cima pra baixo sobre as comunidades locais) e a criação de regimes de gestão que não levam em consideração requisitos de aplicação (como um orçamento inadequado para garantir a vigilância e a fiscalização) são alguns dos maiores desafios para atingir as metas de conservação de modo eficiente.
Outro exemplo é o Santuário de Pelágos, no mar Mediterrâneo, sobre o qual comentei mês passado. Ele foi um marco para as áreas marinhas protegidas por ter considerado a natureza dinâmica dos oceanos (sendo sua escala espacial definida pela frente oceanográfica “sistema frontal permanente da Ligúria”) e por ter expandido as medidas protetivas para águas além das jurisdições nacionais (com a administração compartilhada entre três países).
O processo de demarcação espacial de seus limites demorou uma década e prevaleceram decisões políticas (como haver uma divisão equitativa entre as águas territoriais dos países) sobre considerações ecológicas (como abranger apropriadamente os limites do santuário sobre o habitat crítico dos cetáceos).
Consequentemente, uma grande zona com baixa densidade de cetáceos foi incluída, enquanto uma parte grande de habitat importantes para os cetáceos em zona pelágica foi deixada sem qualquer proteção, em uma zona de alto risco pela circulação de frotas navais e navios de sísmica.
Além disso, mesmo com uma ampla área restritiva, o Santuário de Pelágos (assim como qualquer outra área marinha protegida) não consegue proteger o ecossistema marinho de todos os impactos existentes nos oceanos (como o aquecimento global, um derramamento de óleo, os resíduos plásticos, o escoamento terrestre, os produtos químicos, etc.).
Já existem, por exemplo, evidências científicas de estresse toxicológico em cetáceos que ocorrem no Santuário de Pélagos (especificamente o golfinho-listrado Stenella coeruleoalba, testado para produtos químicos persistentes, bioacumuláveis e tóxicos). A degradação dos ecossistemas circundantes, portanto, são um enorme desafio para a efetividade das áreas marinhas protegidas. Exemplos como esse indicam, claramente, a necessidade de desenvolver e incluir medidas de conservação adicionais às áreas marinhas protegidas, quando pretendemos a conservação dos cetáceos.
Além disso, outro desafio importante está relacionado a espécies que possuem distribuição de amplo alcance (como o golfinho-nariz-de-garrafa Tursiops truncatus) e medidas de proteção de limites estáticos. Isso porque a própria natureza dinâmica do ecossistema marinho significa que os principais habitat de uma população (inclusive de cetáceos) pode mudar ao longo do tempo, influenciando em sua a estrutura e em seus padrões de uso do habitat.
O golfinho-nariz-de-garrafa é capaz de explorar uma ampla gama de habitat, dada sua plasticidade comportamental e ecológica. Na Nova Zelândia, por exemplo, existem três populações geneticamente distintas da espécie, distribuídas descontinuamente ao longo da costa e que estão nacionalmente em perigo de extinção (EN – IUCN).
Entre 1997 e 2006, uma dessas populações, que ocorria principalmente na Baía das Ilhas, sofreu uma redução de 7.5%. Estudos sugeriram ser em decorrência das atividades recreativas e comerciais que acontecem na baía, particularmente, barcos de passeio para “nadar com os golfinhos”.
Quando esse tipo de turismo chegou na baía na década de 1990, foram designadas três zonas de exclusão para a atividade. Pouco se sabia, naquele então, sobre os padrões de uso do habitat da população de golfinhos-nariz-de-garrafa (mas buscavam gerenciar os potenciais riscos para a espécie) e foram acrescentadas outras zonas nos anos seguintes (segundo pesquisas realizadas).
Contudo, avaliados em um amplo período, os golfinhos foram vistos mudando a sua distribuição em relação aos limites espaciais demarcados para sua proteção. Essa pesquisa demonstrou, assim, que as áreas protegidas (na forma de zonas estáticas de exclusão turística) já não são mais suficientes para proteger efetivamente os golfinhos-nariz-de-garrafa, uma vez que foram observadas mudanças no padrão de uso de habitat nos últimos 10 anos.
Por esses exemplos, percebemos a importância de integrar as áreas marinhas protegidas a esforços mais amplos e completos, como através de um planejamento espacial marinho e de esforços de zoneamento dos oceanos. A incorporação de medidas dinâmicas de conservação também poderia contrapor as deficiências atribuídas aos limites estáticos das áreas marinhas protegidas.
No próximo artigo, veremos alguns exemplos de áreas marinhas protegidas que (sim!) parecem contribuir para a conservação efetiva dos cetáceos e o panorama atual das áreas marinhas brasileiras.
Até lá!
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