Cercar ou não cercar? Um desafio para mitigação do atropelamento de fauna em ferrovias

Pesquisadores de diversos países apontam as cercas como o meio mais eficaz para mitigar as fatalidades envolvendo animais em rodovias e ferrovias, tendo o cercamento duas principais funções: barrar a entrada de animais nas vias e direcionar os animais até as passagens de fauna (Huijser et al., 2016; Carvalho, 2017). De acordo com Rytwinski (2016), a combinação de cercas e passagens de fauna pode diminuir em até 86% os atropelamentos de animais em trechos mitigados. No entanto, precisamos questionar: será que em nossas ferrovias nós sempre conseguimos obter bons resultados com essa medida?

Quando falamos em instalação de cercas, temos muitas questões a considerar. A primeira delas é que, devido à grande diversidade de espécies da fauna brasileira, torna-se um desafio encontrar um modelo de cerca que supere a habilidade de transposição pelos animais, que, dependendo da espécie, têm a capacidade de saltar, voar, cavar ou escalar (Jackson e Griffin, 2000).

Em segundo lugar, sabe-se que cercamentos de pequena extensão não são efetivos para a redução do número de atropelamentos, pois espécies com alta capacidade de deslocamento, ao serem inicialmente barradas, podem acabar direcionadas à extremidade oposta à passagem segura, ocorrendo a transposição da via assim que a cerca termina (Huijser et al., 2016). Nesse local, há grande probabilidade de ocorrer a colisão e o óbito desses indivíduos, levando a um evento conhecido como “efeito de fim de cerca” ou “fence end” (Huijser et al., 2016).

Portanto, para reduzir esse efeito, é preciso ter grande atenção em relação ao início e ao fim do cercamento, sendo recomendado que suas extremidades sejam mantidas em locais específicos, como taludes ou pontes, devendo ser evitado o término no nível da via (Huijser et al., 2016).

Cercas têm alto custo de implantação e manutenção

Outra consideração é que, embora pesquisadores indiquem o cercamento como a medida com a melhor relação custo-benefício, a implementação e a manutenção dessa medida tem sido um grande desafio nas ferrovias brasileiras. A malha férrea geralmente está localizada em áreas de difícil acesso para veículos rodoviários convencionais, o que eleva consideravelmente o custo de instalação, podendo chegar a R$ 250 o metro (ou R$ 250 mil por quilômetro). Além disso, há uma grande dificuldade em manter a integridade do cercamento, mesmo que este tenha sido recém-instalado. Dados da Rumo, a maior concessionária de ferrovias do Brasil e pioneira na implementação de planos de mitigação de fatalidades de fauna em ferrovias, indicam que dos 20 quilômetros de cercamento instalados em 2022, menos de 10 quilômetros permaneceram intactos – de acordo com as vistorias realizadas em 2023. Isso ocorreu principalmente devido a furto e vandalismo de grande parte do alambrado (parte metálica).

Os monitoramentos periódicos da via apontaram que, devido aos enormes gaps criados no cercamento em função dos furtos, houve um aumento de colisões no local, inclusive em trechos entre cercas. Nesses pontos, o animal consegue acessar a ferrovia pelos diversos vãos livres, mas não consegue sair com a mesma facilidade, ficando preso entre os poucos trechos que restaram com cercas (dados ainda não publicados).

Também é importante mencionar que, quando se implementam cercamentos mais longos em ferrovias, além da restrição do acesso da fauna, ocorre também a restrição do acesso de funcionários e máquinas responsáveis pela manutenção da via. Essa demanda por acesso à via implica na necessidade de instalação de portões em locais estratégicos. Os portões, por sua vez, são também um ponto de fragilidade em meio ao cercamento, visto que não há como mantê-los com cadeados, devido à rotatividade dos funcionários da concessionária e também pela presença de lindeiros, que muitas vezes transpõem a ferrovia para acessar propriedades vizinhas. Dessa forma, com livre acesso, os portões não são fechados na maioria das vezes, havendo a necessidade de instalação de dispositivos que levem ao fechamento automático, como molas, por exemplo. Portanto, há um custo adicional de manutenção recorrente e também de implementação de um programa de comunicação social e conscientização da população do entorno sobre a importância de manutenção do cercamento e fechamento adequado dos portões.

Ainda em relação à grande extensão dos cercamentos, outra questão importante é a necessidade de interrompê-los sempre que houver passagens em nível, local onde a ferrovia cruza com uma rodovia. Em geral, os animais também acessam os trilhos com maior facilidade por esses pontos, pois neles a ferrovia não apresenta dinâmica de corte e aterro, estando no mesmo nível do terreno adjacente. Nesses locais, como tentativa de desencorajar a travessia de animais ungulados na ferrovia (com risco de atropelamento ou armadilhamento entre as cercas), tem sido recomendada na literatura a instalação de gradis metálicos ou “mata-burros” (Huijser et al., 2016). No entanto, não se conhece a eficácia desse sistema para não ungulados, havendo possibilidade de queda ou aprisionamento de animais no vão livre do gradil. Logo, a interrupção do cercamento nas passagens em nível também colabora para a formação de pontos de fragilidade.

Cercar ou não cercar as ferrovias?

Posto isso, voltamos à nossa pergunta inicial: cercar ou não cercar? A resposta é complexa, mas podemos dizer que ela envolve um bom planejamento estratégico em relação às seguintes questões:

• o local escolhido para instalação do cercamento sofre com furtos e vandalismos com frequência?
• como é a relação da concessionária com a comunidade local?
• haverá plano de comunicação social sobre a ação?
• todas as áreas que possuem interface estão alinhadas e de acordo com a solução proposta?
• qual é o grupo-alvo para mitigação? A cerca é a medida mais indicada para este grupo?
• quais são as condições de entorno (topografia, paisagem, interferências)?
• teremos chance de erosão ou risco à operação?
• temos rodovias paralelas e/ou cruzando a ferrovia com frequência?
• temos uma estratégia bem definida para monitorar a efetividade e manter a integridade do cercamento?

Sem um bom planejamento em relação a essas questões, nossas chances de sucesso são muito baixas.

É evidente a falta de pesquisas no Brasil sobre as colisões com a fauna e a efetividade de medidas de mitigação em ferrovias. Tanto o setor ferroviário quanto os órgãos reguladores carecem de dados técnicos sólidos sobre a eficácia e a replicabilidade das medidas de mitigação comumente recomendadas em outros modais de transporte, como rodovias.

Dentre tantas questões, a única certeza que temos é que há uma urgente necessidade de buscar inovações e viabilizar soluções para redução do impacto das ferrovias sobre a fauna silvestre.

Referências

• Carvalho F, Santos SM, Mira A, Lourenço R. (2017). Methods to monitor and mitigate wildlife mortality in railways. In Railway Ecology (pp. 23-42). Springer, Cham.
• Huijser MP, Fairbank ER, Means WC, Graham J, Watson V, Basting P, Becker D (2016) Effectiveness of short sections of wildlife fencing and crossing structures along highways in reducing wildlife–vehicle collisions and providing safe crossing opportunities for large mammals. Biological Conservation 197: 61–68.
• Jackson SD, & Griffin CR. (2000). A strategy for mitigating highway impacts on wildlife. In T. A. Messmer & B. West (Eds.), Wildlife and highways: Seeking solutions to an ecological and socio-economic dilemma (pp. 143–159). Bethesda: The Wildlife Society.
• Trina Rytwinski ,Kylie Soanes,Jochen A. G. Jaeger,Lenore Fahrig,C. Scott Findlay,Jeff Houlahan,Rodney van der Ree,Edgar A van der Grift: How Effective Is Road Mitigation at Reducing Road-Kill? A Meta-Analysis. November 21, 2016
• https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5117745/

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