Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
A Ciência venceu. Venceu o vírus e o negacionismo. Primeiro, identificou que a causa da doença e das mortes era um vírus. Não identificou apenas que era um vírus, conseguiu saber qual vírus era e, também, sua forma de transmissão. Determinada a forma de transmissão, estabeleceu os procedimentos de segurança: máscara, álcool em gel, distanciamento social.
O negacionismo relutou: incentivou a aglomeração, questionou e se opôs ao uso de máscara. Mas a Ciência não se limitou a orientar; partiu para o combate ativo e, em tempo recorde na história, desenvolveu uma vacina. Enquanto isso, o negacionismo permaneceu propondo cloroquina e outros charlatanismos. Criticou a vacina e negou a seriedade da situação. Mas o avanço da vacinação coincide com a redução dos casos e das mortes. Mesmo assim, parece que nenhum fato ou prova altera o fanatismo cego do negacionismo.
Essa cegueira negacionista, porém, não se restringe à prevenção da Covid-19. Ela ultrapassa estes limites e avança sobre a negação de suas causas: o uso de animais silvestres. Embora muitas vezes se atribua à China a origem da doença, ela, na verdade, resulta do uso de animais silvestres que ocorre, não somente lá, mas também aqui. Embora lá os mercados de venda de animais sejam aceitos, no Brasil, são, ao menos, tolerados. Feiras no Amazonas, mercados no Acre e no Pará, além de capitais e cidades do interior nordestino, pululam de animais silvestres vendidos à população. Mesmo no Rio de Janeiro, capital cultural do Brasil, as feiras de Duque de Caxias e Acari, por exemplo, são testemunhos dessa vergonha nacional.
No Norte e em alguns pontos do Nordeste, a venda de carne de caça é mais comum, mas em todos os locais citados, animais silvestres se amontoam, sofrem e morrem antes ou até serem comprados. O esquecimento não atinge apenas a origem da Covid-19. Em uma ilusão coletiva, esse esquecimento coletivo também possibilita amenizar ou eliminar as lembranças dos transtornos advindos do isolamento social.
Imaginei, no início da pandemia, que ela seria um divisor de águas no comportamento humano. Toda a sociedade sofrendo porque algumas poucas pessoas gostam de comer animais silvestres, porque algumas poucas pessoas querem usar animais silvestres. As consequências catastróficas de morte das pessoas, mais de 600 mil apenas no Brasil, além do desemprego e dos incontáveis prejuízos econômicos, seriam suficientes para que o interesse de poucos (no uso de animais silvestres) não justificasse o sofrimento, a morte e o dano econômico de muitos.
Não sei o que aconteceu, mas não foi assim. A pandemia veio, se instaurou, matou, causou desemprego e sofrimento. Mas, e agora? O que vejo?
O Brasil continua menosprezando suas próprias feiras de venda de animais silvestres, criadouros comerciais continuam fazendo propaganda da venda de animais silvestres, caçadores organizados com a desculpa do controle de javalis tentam liberar a caça no país e o governo permanece com a proposta de Lista Pet que, em suma, é estabelecer quais espécies silvestres nativas serão usadas como animais de estimação. Esse uso de animais silvestres aliado ao desmatamento descontrolado poderão nos colocar no epicentro de uma nova pandemia.
Onde estão as lembranças das mortes, do sofrimento, do dano econômico? Foram apagadas ou nunca consideradas? Imaginei que, embora as pessoas não considerassem errado ter animais silvestres em decorrência de uma avaliação ética, ao menos todo o sofrimento da humanidade seria suficiente para que nossa espécie rejeitasse que os desejos fúteis de alguns justificassem o sofrimento de todos. Assim não o foi.
Mas ainda existiu o fato das pessoas se verem confinadas, uma possibilidade para entender que mesmo uma casa não é espaço suficiente para seu bem-estar, não apenas físico, mas também, ou principalmente, mental. Vivenciaram, por menos de dois anos e sem um isolamento total, o que os pássaros vivem por uma vida inteira. Nasça em uma gaiola e morra nela. Onde você mora agora? Imagine toda a sua vida nesse espaço e, mesmo assim, estará longe do sofrimento de um pássaro. Afinal, imaginar não é viver ou, melhor, sobreviver.
O Projeto de Lei nº 1.487/2019 do deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), que proibia a criação, manutenção e guarda de passarinhos em gaiolas ou viveiros, foi mutilado mesmo após os humanos sofrerem as agruras da clausura. O parecer do relator, o deputado federal Joaquim Passarinho (PSD-PA), não se compadece daqueles que lhe dão o sobrenome e prefere continuar a vê-los presos, sem voar, em gaiolas e viveiros.
A Covid-19 veio, matou e a vacina chegou. E agora pergunto a você: o que mudou?
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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