Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Quem não conhece a história do rei Midas? Midas era um rei muito rico e ambicioso que fez um pedido ao deus Dionísio: tudo que tocasse se transformasse em ouro. Pedido aceito prontamente. Imaginem a alegria de Midas ao testar sua nova habilidade e confirmar que tudo o que tocava virava ouro.
Mas essa alegria rapidamente se transformou em desespero ao constatar que não conseguiria mais comer ou beber e que, embora cercado de riquezas, morreria de fome e sede. Em desespero, ao abraçar sua filha querida, transformou-a em uma estátua de ouro. Ao perceber que seu desejo era, na realidade, uma maldição, Midas recorre novamente a Dionísio para que ele reverta seu pedido e que tudo volte a ser como antes. Ele então é instruído a se lavar nas águas correntes de um rio para tirar o ouro de suas mãos, o que faz imediatamente.
Ao retornar ao seu castelo, tudo que havia tocado voltara ao normal. Midas abraça a filha em completa felicidade e decide dividir sua grande fortuna com seu povo.
Essa história é um mito sobre a tragédia da avareza e da ganância, embora uma interpretação mais contemporânea sugira o ‘Complexo de Midas’, “caracterizado por uma percepção onipotente da realidade na qual o indivíduo acredita tanto na própria intuição que desconsidera todos os demais fatores externos, contextuais, no tempo e no espaço. Deixa de se importar com a reação dos outros aos seus atos, convencido de que sua genialidade intuitiva será amplamente reconhecida”. (Montserrat Martins, 2012)
Nas duas interpretações (a da ganância e avareza, bem como naquela em que o indivíduo, por diferentes motivos, considera que sua intuição e atos, independentes de todas as demais evidências contrárias, são válidos), podemos traçar um paralelo com o que está acontecendo hoje na Amazônia em relação à mineração do ouro. Inicialmente, a obtenção desse metal precioso e cobiçado gera grandes fortunas, mas já se constata que na realidade é uma maldição, que traz destruição e morte.
Essa maldição não se restringe unicamente ao uso do mercúrio e de outros elementos nocivos ao ambiente, mas deve-se principalmente a destruição das florestas, dos rios e toda fauna associada. Nessa história, infelizmente, Dionísio não irá reverter a maldição e as consequências nefastas, que podem piorar.
O governo federal está trabalhando com enormes dificuldades para a retirada dos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami (TI), em Roraima. Vítimas da mesma saga, eles estão iniciando a ocupação de outras áreas ainda pristinas, não só em TIs, mas também em terras públicas, como unidades de conservação. É o caso do Parque Nacional do Pico da Neblina, entre outras, como amplamente denunciado pelas mídias em geral.
Garimpo no Amazonas
E neste momento, quando as atividades de mineração do ouro na Amazônia estão sendo questionadas, o Conselho Estadual de Meio Ambiente do Amazonas (CEMAAM), a pedido da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas (SEDECTI), criou a Câmara Técnica Provisória de Recursos Minerais, que discute, a portas fechadas, uma proposta para flexibilizar a legislação ambiental para a operação de garimpo de cooperativas, substituindo o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (Eia/Rima) pelo Plano de Controle Ambiental (PCA).
Certamente seria mais produtivo se o CEMAAM buscasse soluções ambientais para, de fato, desenvolver uma economia capaz de conviver com a floresta e seus povos e superar o garimpo, no lugar de acatar a solicitação da SEDECTI para aproveitar o espaço criado pela retirada do garimpo em TIs e facilitar a mineração de ouro em outras áreas no Amazonas, aprofundando a crise existente do garimpo na região e ameaçando a integridade da floresta, seus corpos d’água e sua fauna.
Como já divulgado em diversos meios e é amplamente conhecido, o garimpo tem um potencial de destruição imensurável. Mas para os Midas de plantão, a oportunidade de riquezas, mesmo às custas dos severos impactos ambientais e humanos, é extremamente sedutora. Assim como não existe mineração sustentável, não existe mineração de ouro sem severo impacto ambiental.
Mercúrio no garimpo
Como relatado em artigo publicado no Fauna News em junho de 2022, o Brasil não produz mercúrio, sendo importado todo esse metal consumido internamente. Entre 1972 e 1984, a média de importação foi de 160 toneladas por ano. Em 1989, chegou ao volume de 340 toneladas, embora quantidade muito maior entre de forma ilegal no país. Considerando que na mineração artesanal no Brasil os garimpeiros usam um grama de mercúrio para produzir um grama de ouro (a média global é de 3:1), é possível estimar grosso modo, o volume de ouro garimpado e o de mercúrio despejado no ambiente. Desde 2022, o Brasil é o 10º produtor de ouro do mundo, com a produção oficial de 106,9 toneladas anuais, segundo estimativas oficiais.
O mercúrio é um metal que existe em abundância na natureza e cujas fontes são o vulcanismo, a desgazeificação da crosta terrestre, a erosão e a dissolução de minerais das rochas devido à penetração da água nelas durante períodos muito prolongados.
Diversos estudos mostram que na Amazônia existe um volume muito grande de mercúrio natural, bastante acima de valores considerados seguros quando comparados a outras regiões do mundo e até mesmo a áreas industrializadas. Os estudos mais detalhados sobre o mercúrio na Amazônia foram feitos ao longo do rio Negro, região com baixo impacto de mineração. Uma das críticas aos resultados é que foram, na grande maioria, concentrados nesse rio e com pouca ou nenhuma informação para as demais áreas da bacia.
Alguns grupos interessados na mineração do ouro querem extrapolar os resultados obtidos nos estudos na região do rio Negro para toda a bacia. Dessa forma, pretendem descartar a influência do mercúrio proveniente da mineração como o vilão na história de contaminação, alegando que existem outras formas de obtenção do ouro sem o uso do mercúrio e que ocorrem outras contaminações pelo metal não originadas pelo garimpo.
No entanto, a questão da mineração não se resume somente ao acréscimo de mercúrio despejado no ambiente no processo da amalgamação do ouro. Acima de tudo, está nos efeitos provocados pelas ações que colocam em circulação um maior volume de mercúrio natural, como desmatar e queimar as florestas, ao causar a quebra e o revolvimento do solo nas encostas e no fundo dos rios, na destruição total do leito dos rios com o uso das dragas e injetoras e o inevitável impacto negativo na cobertura vegetal no entorno da atividade, aumentando o volume de sedimentos nos corpos de água e facilitando a metilação do mercúrio.
Todas essas ações, provenientes das atividades da mineração, com ou sem o uso do mercúrio, afetam toda a cadeia produtiva, aumentam o risco da liberação do mercúrio natural nos rios e igarapés da região e matam diversas espécies aquáticas, deixando um ambiente de total desolação.
Um artigo publicado recentemente (Silva et al. 2023) revelou que a ocorrência de mercúrio no leite e em órgãos do boto-vermelho (Inia geoffrensis) já havia sido registrada com níveis superiores àqueles considerados seguros pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1996 e em 2008 e 2009, em indivíduos de região próxima a Manacapuru (Amazonas) e do entorno da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM), respectivamente.
Nesse artigo, Silva e colaboradores identificaram no leite e no sangue de um exemplar de boto-vermelho, proveniente da RDSM, a presença de 14 metais pesados, dos quais três (Cromo, Cobre, Zinco), quando em excesso, são considerados tóxicos e estavam em níveis muito acima dos considerados seguros pela legislação brasileira. Não existem indústrias consideradas ‘poluidoras’ nem mineração ou garimpo nas áreas mencionadas ou próximas a elas, ou mesmo dentro do que se pode considerar como área de vida para esses animais, confirmando o longo alcance dos poluentes gerados por atividades antrópicas na região.
Em mamíferos, a contaminação pelo mercúrio, dependendo do grau de toxicidade, pode afetar o sistema nervoso central, reduzir a taxa reprodutiva, induzir a má-formação fetal e provocar abortos, como já confirmado em humanos.
As populações originárias, bem como os animais na Amazônia, conviveram em equilíbrio com o mercúrio natural desde seus primórdios sem que sua vida e seu bem-estar fossem afetados. Somente com a ação do homem e seus projetos desordenados de uso das florestas e dos rios, é que os efeitos tóxicos do mercúrio natural passaram a se manifestar, acrescidos dos efeitos mais imediatos do mercúrio proveniente das áreas de garimpo.
Assim, fica evidente a importância de se avaliar o uso e o manejo de regiões com solos que possuem concentrações de mercúrio natural, para evitar a degradação da vegetação que pode gerar o aumento da carga de sedimentos nos sistemas de drenagem e, dessa forma, aumentar o risco da liberação do mercúrio nos rios e igarapés.
Os estudos de impacto ambiental para os empreendimentos na região devem continuar a ser obrigatórios. O CEMAAM não pode flexibilizar a legislação ambiental para facilitar nenhuma operação de garimpo e substituir o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (Eia/Rima), pelo Plano de Controle Ambiental (PCA) no estado do Amazonas.
Referências
– Montserrat Martins, 2012 https://sul21.com.br/colunasmontserrat-martins/2012/06/complexo-de-midas/
– Silva, C.C., Oliveira, G.da Cruz, Carvalho, H.R.A., da Silva, V.M.F. Detection and quatification of heavy metals in blood and milk of Amazon river dolphin (Inia geoffrensis) using wavelength-dispersive X-ray fluorescence spectrometry. X-Ray Spectrom. 2023; 1-9.
– da Silva, V.M.F. 2022. O ouro, o mercúrio e os mamíferos aquáticos da Amazônia. Fauna News, Aquáticos.
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O podcast Silvestres já abordou o tema da conservação de mamíferos aquáticos na Amazônia e o problema do mercúrio. Entrevistamos a pesquisadora Vera Maria Ferreira da Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Confira abaixo!
https://www.youtube.com/watch?v=mQX7eOZ6w9M
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