Capacidades jurídicas animais: uma teoria para fazer o Direito Animal funcionar

Ela é uma teoria dogmática dos direitos animais, ou seja, organiza as respectivas fontes normativas disponíveis.

Vicente de Paula Ataide Junior

Pós-doutor de Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor dos Programas de Pós-graduação em Direito da UFPR e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – mestrado e doutorado. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR (Zoopolis). Coordenador do curso de especialização em Direito Animal da Escola da Magistratura Federal (ESMAFE-PR). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro consultor da Comissão de Juristas para a reforma do Código Civil. Juiz federal em Curitiba.

07 de março de 2025

FAUNA NEWS Capacidades jurídicas animais: uma teoria para fazer o Direito Animal funcionar

O Brasil é o país com o maior e mais expressivo conjunto de leis sobre direitos animais.

Temos direitos animais na Constituição de 1988, com a regra da proibição da crueldade contra animais, a partir da qual inúmeras decisões protetivas foram proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Temos direitos animais na legislação infraconstitucional, ainda que a legislação federal não adote, por enquanto, os conceitos tipicamente animalistas (vejam nosso artigo, no Fauna News, sobre a reforma do Código Civil), ao contrário do que fazem muitas leis estaduais e municipais, as quais reconhecem animais como sujeitos de direitos, atribuem direitos a animais ou, ao menos, protagonizam os interesses animais.

Temos, desde 2023, na reestruturação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, promovida pelo Decreto nº 11.349/2023, a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, dentro da qual se encontra o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais, o que demonstra o acolhimento, pela administração federal superior, da existência dos direitos animais.

Não à toa, o Brasil contempla, desde 2020, o fenômeno da judicialização terciária do Direito Animal, com animais – especialmente cães e gatos – ocupando o polo ativo de demandas judiciais na reivindicação de seus direitos individuais, inclusive reparação de danos morais [1].

Mas, para que um novo campo do Direito funcione, ou seja, para que induza ou imponha os comportamentos almejados pelas suas normas, não basta a existência de fontes normativas como a Constituição, as leis e os precedentes dos tribunais. A efetividade do Direito também exige uma sistematização teórica, produzida pela doutrina dos juristas, por meio da qual todo o material normativo disponível ganhe organicidade, integridade e coerência, facilitando a sua aplicação prática.

Atualmente, o Direito Animal brasileiro já conta com uma teoria com esses propósitos: trata-se da chamada teoria das capacidades jurídicas animais [2].

A teoria das capacidades jurídicas animais é uma teoria dogmática dos direitos animais, ou seja, ela organiza as respectivas fontes normativas disponíveis, sendo, portanto, aderente ao ordenamento jurídico vigente no país.

Essa tarefa de sistematização de fontes normativas é uma tarefa da dogmática e, como bem acentua o professor Tercio Sampaio Ferraz Jr., da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,

as questões dogmáticas são tipicamente tecnológicas”, visando a “possibilitar uma decisão e orientar uma ação” [3].

Sem uma consistente teoria dogmática dos direitos animais, forjada a partir da ordem jurídica vigente, fica muito difícil convencer juízes e tribunais a tutelarem jurisdicionalmente esses novos direitos. Sem dogmática, abre-se caminho fértil para decisões arbitrárias e autoritárias, as quais, na maioria das vezes, negam as conquistas politicamente alcançadas para a proteção dos mais vulneráveis.

A possibilidade de uma teoria jurídica com essas características se dá exatamente pela fartura de fontes normativas sobre direitos animais no Brasil.

Quais são as bases da teoria das capacidades jurídicas animais?

Ela parte da constatação de que as fontes normativas brasileiras, especialmente as constitucionais, já possibilitam afirmar que animais são sujeitos de direitos. Temos fundamentos fáticos, valorativos e normativos para sustentar a existência do Direito Animal [4].

A teoria também constata que, não obstante animais sejam sujeitos de direitos, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não lhes outorga personalidade jurídica, ou seja, não lhes dá a aptidão genérica para ter direitos e deveres, o que caracteriza, juridicamente, as pessoas.

Como a regra constitucional da proibição da crueldade não distingue espécies, é possível dizer que todos os animais sencientes são sujeitos de direitos, ainda que não sejam pessoas.

Se assim é, os direitos subjetivos atribuídos aos animais não decorrem de sua personalidade jurídica, mas dos direitos efetivamente outorgados, de acordo com as possibilidades do sistema jurídico, em seus vários estamentos normativos. Essa distribuição de direitos subjetivos aos animais é feita de acordo com a capacidade jurídica de cada grupo de espécies animais, ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro provê um determinado volume de direitos a cada um desses grupos.

Isso quer dizer que, do ponto de vista dogmático, os animais não têm, todos, os mesmos direitos subjetivos: nem todos têm direito à vida, por exemplo, como é o caso dos animais sujeitos à exploração pecuária.

Mas – isso é importante frisar – todos os animais têm direitos, todos ostentam valor intrínseco e dignidade própria.

A teoria das capacidades jurídicas animais tenta, por isso, organizar, metodicamente, essa desigualdade na distribuição de direitos, estabelecendo os respectivos níveis quantitativos de acordo com os grupos de espécies animais: são os níveis de capacidade jurídica animal, definidos a partir da atribuição, pelo ordenamento jurídico, do direito à vida para os animais.

A partir do direito à vida, reconhecido, ou não, pelo ordenamento jurídico, a capacidade jurídica animal pode ser dividida em três níveis:

capacidade jurídica animal plena;
capacidade jurídica animal plena reduzível; e
capacidade jurídica animal reduzida [5].

Animais com capacidade jurídica animal plena são aqueles aos quais o ordenamento jurídico garante o direito à vida como direito inviolável, que não comporta supressão por razões ecológicas, econômicas ou científicas. Nesse nível de capacidade jurídica animal encontram-se, em uma primeira classe, os cetáceos e, em uma segunda classe, os cães e gatos.

Animais com capacidade jurídica plena reduzível são aqueles aos quais o ordenamento jurídico garante o direito à vida, mas que comporta supressão por razões ecológicas ou científicas, contidas em permissão, licença ou autorização da autoridade competente. Têm capacidade jurídica plena reduzível os animais silvestres, nos termos do artigo 1º, caput, da Lei nº 5.197/1967 e do artigo 29 da Lei nº 9.605/1998.

Animais com capacidade jurídica reduzida são aqueles aos quais o ordenamento jurídico não garante o direito à vida, muito embora tenham o direito fundamental à existência digna: são os animais submetidos à exploração pecuária e pesqueira, nos termos dos artigos 23, VIII e 187, § 1º, da Constituição, além dos animais usados em explorações científico-didáticas, conforme disciplina da Lei Federal nº 11.794/2008.

Não obstante, considerando o caráter dinâmico da teoria das capacidades jurídicas animais, os animais que estejam nesse nível mais baixo de capacidade jurídica poderão ser promovidos ao nível superior – capacidade jurídica plena reduzível – caso sejam resgatados em situação caracterizadora de maus-tratos, como impõe o precedente vinculante firmado na ADPF 640, em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal [6].

Os níveis de capacidade jurídica animal auxiliam o aplicador do Direito Animal – especialmente os juízes – a encontrar os direitos subjetivos de cada animal concreto, sem precisar fugir das balizas do ordenamento jurídico.

A expectativa é que a difusão da teoria das capacidades jurídicas animais possa, realmente, aprimorar a defesa dos animais perante o Poder Judiciário, facilitando o trabalho dos advogados e advogadas animalistas. Mais do que isso, o seu discurso é descoisificante, auxiliando na formação de uma nova cultura de respeito aos animais – e à própria Natureza – baseada em critérios de justiça.

Como disse certa vez Voltaire,

eu lanço uma semente que poderá, um dia, produzir uma colheita. Esperamos tudo do tempo, da bondade do rei, da sabedoria de seus ministros e do espírito racional que começa a espalhar por toda parte a sua luz.” [7]

Referências

[1] Sobre isso, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.
[2] Para um estudo aprofundado sobre essa teoria, ver: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal: a teoria das capacidades jurídicas animais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025.
[3] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 89-90.
[4] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal: a teoria das capacidades jurídicas animais, cit., p. 35-67.
[5] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; LIMA, Yuri Fernandes. Teoria das capacidades jurídicas animais. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 19, n. 2, maio/ago. 2024, disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/59041. Acesso em: 6 mar. 2025.
[6] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal: a teoria das capacidades jurídicas animais, cit., p. 374-375.
[7] VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Tradução de Leandro Cardoso Marques da Silva. São Paulo: Edipro, 2017, p. 99.

Sobre o autor / Vicente de Paula Ataide Junior

Pós-doutor de Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR. Professor dos Programas de Pós-graduação em Direito da UFPR e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – mestrado e doutorado. Líder do Núcleo de […]