Caça não resolve

O javali (Sus scrofa) é uma espécie invasora no Brasil. Ele se origina na Eurásia, mas, ao contrário dos povos originários, não chegou aqui pelo estreito de Bering, tampouco cruzou nadando os oceanos. Como chegou às Américas, então? Foi trazido pelos humanos.

Mas, qual o objetivo de trazer javalis da Eurásia? Para servirem como animais de caça. Na Argentina, sua caça já era legalizada muito antes do que no Brasil.

Caçadores brasileiros viajavam até a Argentina para se divertir matando javalis, cervos Axis e búfalos, entre outros animais. Os brasileiros, que invejavam e ansiavam poder caçar no quintal de casa, agora podem.

Problemas da caça do javali no Brasil

Em 2013, foi liberada a caça de javalis, que deveria ser uma caça de controle, mas se mostrou uma caça “esportiva”. Como sabemos disso? Por dois ou qualquer caminho que se analise: os vídeos nas redes sociais que variam entre diversão e farra durante algumas caçadas, além dos dados fornecidos pelos próprios caçadores. De acordo com os dados, 70% dos javalis abatidos são machos adultos. E qual o problema disso? O problema é que isto denota claramente uma caça “esportiva” em busca de troféu, o que foge à autorização obtida. Ou seja, deveria ser uma caça de controle, mas se tornou caça “esportiva”, o que é proibido no Brasil.

Outra importante questão é que, quando o foco é no abate de machos adultos, isso significa que não está ocorrendo o controle. Enquanto os fazendeiros ficam felizes em ver alguns javalis mortos por caçadores, a verdade é que as fêmeas deixadas para trás poderão ser fertilizadas por qualquer macho que sobrou. O controle é só aparente, o fazendeiro fica contente, mas a caça serviu apenas para a diversão do caçador.

Outra importante questão é que as caçadas não obedecem a um cronograma de controle planejado, seu local e data estão relacionados à conveniência e comodidade dos caçadores. Estes dois aspectos em si – foco nos machos e ausência de uma programação estudada – tornam a caça do javali totalmente inócua como instrumento de controle.

Se ela fosse apenas inócua, já seria questionável. Mas o problema é que ela também apresenta aspectos negativos.

Desde que se iniciaram as caçadas, caçadores já se atiraram sob o argumento de terem confundido humanos com um javali. Isto demonstra alguma falha no processo de autorização. Mas se alguns caçadores confundem humanos com javalis, o que não fazem vários outros com relação a nossos porcos-do-mato nativos, os catetos e as queixadas?

Mesmo que os caçadores soubessem a diferença (não sei se sabem). Isso não é nem ao menos aferido. Seus cães, com certeza, não sabem a diferença entre catetos ou queixadas e javalis. Os cães chegam antes na presa. Assim, qual a segurança de que os cães de caça não estão, muitas vezes, “correndo” catetos ou queixadas e não javalis?

Cães usados na caça

Por falar em cães, não podemos olvidar dos que são abandonados no campo. Terminada a caçada, depois de algumas chamadas não retornam a tempo, acabam deixados no meio do mato. Não o cão-mestre, muitas vezes com coleira GPS, mas os demais menos valiosos. Cães podem formar matilhas ferais, ainda mais aqueles já treinados para a caça. Estaremos nós trocando a bioinvasão de javalis pela de cães?

Sobre cães ainda, há que se falar da caça de agarre, na qual os cachorros são colocados para lutar com o javali. Isto é crime no Brasil com pena de dois a cinco anos (ver art. 32 da Lei n° 9.605/1998), mas a caça de agarre ainda figura como uma das possibilidades, desde que não haja maus-tratos. Algo como: pode brincar na piscina, mas se você se molhar, ficará de castigo.

Finalmente, temos que perceber que após 10 anos de sua liberação, a caça de javalis não controlou sua população, ao contrário, hoje sua ocorrência é citada em mais municípios que 10 anos atrás. Aliás, existe uma coisa interessante nisso. Alguns locais que registram javalis não possuem conexão com nenhuma outra área onde eles já ocorram. Aí vem a pergunta óbvia: como chegaram lá? Alguém levou? Quem teria interesse em espalhar javalis? Fazendeiros? Ambientalistas? Acho que não…

O javali é nosso melhor funcionário!”

Foi uma frase que ouvi à exaustão no congresso de caça em Goiânia (GO). Não é contraditório? Quem deveria pensar em controlá-lo estar chamando a espécie que deveria ser controlada de “melhor funcionário”? Não se o javali atende a uma ideia maior.

Sob o argumento do controle do javali, a caça foi liberada no Brasil. Ao javali se segue o cervo axis (Axis axis). O argumento de controle e proteção das lavouras que, em suma, respaldou a caça de javalis, também pode ser usado para justificar a caça de capivaras, catetos e queixadas. Se “colar” esta ideia, percebem? A gente saltou da caça de exótico para nossas espécies nativas.

Então, se produtores podem controlar as espécies que invadem suas plantações, por que eu, pecuarista, não teria o mesmo direito de controlar (matar) onças? Assim, liberada a caça das onças, alguém poderia dizer: mas por que caçá-las de graça? Vamos ganhar dinheiro vendendo safáris de onças, mas isso só para proteger os rebanhos, tá? Alguns até usariam a desculpa de conservação dizendo que para caçar onças é preciso ter florestas, então caçar e matar onças protege as florestas.

O próximo passo seria a reprodução de onças em cativeiro e a venda dos animais para serem caçados – caça enlatada. Parece absurdo? Na África do Sul fazem isso com leões e na Argentina com onças-pardas. Este é o resultado final da caça de javalis. Parece teoria da conspiração? Não é quando já está em curso, lembre-se: o cervo Axis já apareceu e o javali não desapareceu.

Então, pergunte-me novamente por que a caça de javali não funciona para seu controle e por que sou contra a caça?

Mas em 27 de dezembro de 2023, a caça de javalis foi novamente liberada…

O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.

Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).