Por Larissa Oliveira Gonçalves
Bióloga, mestre e doutora em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pesquisadora colaborada do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma universidade (NERF-UFRGS)
transportes@faunanews.com.br
As obras de arte corrente, ou bueiros, são estruturas de drenagem instaladas em rodovias para permitir a passagem e o escoamento da rede hidrográfica interrompida pela via. A passagem de água é o objetivo dessas estruturas, mas será que elas também não podem servir como passagem da fauna? Muitas vezes já discuti esse ponto com colegas e ainda me intrigo muito com essa pergunta.
No ano passado, participei de um levantamento de todas as estruturas de drenagem contidas na malha viária de uma rede de estradas concessionadas aqui no Rio Grande do Sul. Foram mais de 500 estruturas levantadas que continham as mais variadas formas e tamanhos. Era nítido, até mesmo em uma única inspeção, que algumas delas não eram adequadas nem mesmo para passagem de água, pois pareciam ser bastante pequenas para o volume a ser drenado. Apesar disso, muitas outras pareciam sim ter potencial de uso pela fauna. Potencial de uso não significa dizer que elas são boas o suficiente para permitir travessias seguras para os animais nem reduzir os atropelamentos. Talvez, futuramente, eu consiga responder algo específico sobre essas drenagens.
É intuitivo pensar que um lugar onde passa água e que provavelmente é próximo aos remanescentes de vegetação nativa, como as Áreas de Preservação Permanente, pode ser o lugar em que os animais mais utilizam para o deslocamento. No geral, esse é o argumento que mais falamos quando pensamos que essas estruturas podem ser úteis também para permitir a passagem da fauna. No entanto, quem são os animais que utilizam essas estruturas?
Pesquisando sobre isso, me deparei com um estudo, feito no Canadá, que não só avaliou quem eram os animais que faziam travessias completas nas estruturas de drenagem, mas também comparou quais animais eram observados no entorno da estrada e perto dessas estruturas. Utilizando armadilhas fotográficas, a pesquisa observou 20 espécies de mamíferos na área ao redor das drenagens e que somente metade delas utilizaram os bueiros em travessias completas. O que eles discutem é que a maioria das espécies que fizeram essas travessias completas são bastante tolerantes à água, como é o caso do guaxinim (Procyon lotor). Essa é uma espécie bastante parecida com o mão-pelada (Procyon cancrivorus) que ocorre no Brasil.
Bueiros são feitos para passar água e é esperado então que espécies que tem relação com a água possam usá-los com mais frequência. Como os autores compararam o uso de duas formas (apenas entrando na drenagem ou fazendo uma travessia completa), eles puderam concluir que, apesar de algumas variáveis – como nível da água, material da estrutura, luminosidade e distância da floresta – terem relação com a entrada dos animais nos bueiros, elas não foram relacionados às travessias completas. Eles concluem assim que, pelo menos para essa fauna de mamíferos naquela estrada, os bueiros não são adequados para substituírem passagens de fauna.
Um estudo recém publicado aqui no Brasil mostra que bueiros de dimensões de aproximadamente 2 metros x 2 metros também são utilizados pela fauna, incluindo espécies ameaçadas de extinção, como a anta. Antas e outras espécies associadas a ambientes aquáticos usaram mais os bueiros que as passagens secas construídas para passagem do gado. Isso corrobora a ideia de que bueiros podem permitir a travessia segura da fauna, pelo menos para animais associados a água. Entretanto, a riqueza e a diversidade de espécies foram maiores nas passagens secas, o que nos mostra que outras espécies utilizam passagens secas. Lembrando que sempre é importante deixar claro quais são nossas espécies-alvo, já que diferentes espécies utilizam diferentes tipos de passagens.
Uma solução para tornar as drenagens mais atrativas a um maior número de espécies pode ser instalar plataformas secas no interior das estruturas para permitir a travessia sem o contato com a água. Isso foi uma das perguntas de um estudo feito em Portugal que concluiu que a presença de plataformas secas foi importante para os eventos de cruzamento de algumas espécies.
No Brasil, temos muitas drenagens e já sabemos que os animais podem sim usá-las. Para proporcionar maiores oportunidades de cruzamento, poderíamos utilizar as inúmeras drenagens (e suas diferentes dimensões) como um grande experimento e investir em adequações para que pudéssemos testar o seu uso e, quem sabe, demostrar a sua efetividade. Efetividade aqui pode ser tanto em aumentar travessias seguras como também reduzir os atropelamentos. Muito recurso poderia ser economizado e direcionado para outras ações. Precisamos de mais experimentos e mais evidências para fazer isso acontecer.
– Leia outros artigos da coluna FAUNA E TRANSPORTES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).