Bruno Navarro
Bruno Navarro é paleontólogo, doutorando pelo programa de pós-graduação em Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Muitas vezes, as descobertas que fazemos sobre dinossauros e outros animais pré-históricos não se dão por evidências diretas, presentes em seus ossos fossilizados, mas sim por evidências indiretas – como as pegadas fósseis, que são os mais famosos tipos de icnofósseis.
Pela primeira vez, um sítio com pegadas de dinossauros foi identificado no Grupo Bauru, uma unidade geológica conhecida pelo amplo registro fóssil de vertebrados no sudeste do Brasil (inclusive, já abordamos sobre ela em artigos de abril e de outubro de 2022). As pegadas foram localizadas pelo professor da Universidade Federal de Uberlândia, Ariovaldo Giaretta (um dos autores do estudo), em rochas da Formação Santo Anastácio na cidade de General Salgado, noroeste do estado de São Paulo.
Esse achado não apenas inaugura o registro de icnofósseis de dinossauros nessa unidade, mas também revela uma diversidade surpreendente, que inclui terópodes, saurópodes e, o mais fascinante, a presença de ornitísquios, uma vez que esses últimos ainda são raros no registro brasileiro como um todo (relembre sobre o grupo aqui).
O estudo dessas pegadas revelou que seus produtores correspondiam a pelo menos quatro tipos diferentes de dinossauros terópodes, incluindo um possível abelissaurídeo, megarraptores, um alvarezssauroide (grupo conhecido por serem pequenos carnívoros com braços bastante reduzidos) e uma forma não identificada. Além desses, pela primeira vez dinossauros ornitísquios foram identificados no grupo Bauru e incluem um anquilossauro, um pequeno ornitópode, um grande ornitópode bípede e um quadrúpede, possivelmente iguanodontes. Por fim, essa fauna também contava com um pequeno saurópode, provavelmente um rebaquissaurídeo.
Mas como é possível diferenciar as pegadas de tantos tipos de dinossauros diferentes? Informações como a quantidade e a angulação de dígitos preservados e seu formato geral são as principais fontes para a identificação. Por exemplo, pegadas tridáctilas (três dedos), onde o dedo mediano é sempre maior, é indicativo que o gerador da pegada foi um terópode, enquanto dinossauros ornitópodes possuem pegadas com dígitos curtos e arredondados. Por fim, comparações com fósseis de pés são realizadas a fim de identificar qual grupo pertenceu a pegada.
A Formação Santo Anastácio, depositada em um ambiente árido a semiárido, abrange o período Cenomaniano–Turoniano (aproximadamente entre 97 e 93 milhões de anos atrás), um período crítico de mudança faunística no Cretáceo. Essa “fatia” do período Cretáceo é marcada por grandes mudanças climáticas e ambientais a nível global, associadas ao início do Máximo Térmico do Cretáceo, um período prolongado de altas temperaturas que perdurou até 82 milhões de anos atrás.
O intervalo Cenomaniano-Turoniano representou um ponto de inflexão crucial na evolução dos ecossistemas cretáceos, especialmente porque as alterações ambientais criaram condições adversas que podem ter influenciado um evento de substituição faunística. As pegadas foram preservadas em camadas de arenito, depositadas em lagos efêmeros e sistemas fluviais intermitentes. Esse cenário paleoambiental reflete as condições que moldaram a vida naquela região durante o Cretáceo Superior (veja a imagem no alto do artigo).
A presença de pegadas de ornitísquios é particularmente intrigante, visto que fósseis corporais desse grupo estão ausentes nas unidades superiores (ou seja, as mais recentes) do Grupo Bauru. Isso indica que essas espécies podem ter migrado para outras regiões ou foram extintas na região devido às flutuações climáticas constantes e mudanças na vegetação.
Apesar das controvérsias sobre as causas principais dessas mudanças, é evidente que elas tiveram impacto significativo nos últimos estágios da evolução dos dinossauros. Com as mudanças ambientais radicais, o papel ecológico que antes era ocupado pelos ornitísquios, animais sempre herbívoros, podem ter sido substituídos por crocodiliformes do grupo dos Notosuchia (como os esfagessaurídeos), altamente especializados e com dieta quase sempre onívora.
A descoberta das pegadas de dinossauros na formação Santo Anastácio evidencia a relevância da icnologia para compreender os eventos bióticos e climáticos complexos durante o início do Cretáceo Superior. Ela preenche lacunas essenciais em nossa percepção da composição faunística e das condições paleoambientais nos estágios iniciais do Grupo Bauru, sendo uma verdadeira janela para a história da Terra.
Para saber mais
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).