![Papagaios saindo de viveiro durante soltura](https://faunanews.com.br/wp-content/uploads/2021/03/soltura-papagaios-ba-prf-1.jpg)
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
É indiscutível a relação do tráfico de animais silvestres, e em particular da avifauna, com as ações de soltura. O estado de São Paulo é peça chave nesse universo de “venda ilegal” de fauna silvestre, sendo o maior mercado “consumidor” desse “produto”. As causas desse cenário desolador são variadas e, nesse sentido, as áreas de soltura são peças-chave. A questão é: terá a soltura dos animais apreendidos um efeito positivo ou negativo para as espécies traficadas?
A publicação Guia de Identificação de Aves Traficadas no Brasil, publicado pela Polícia Federal em 2016, traz uma extensa lista dos passeriformes mais vendidas ilegalmente. Essa publicação é muito interessante, pois traz imagens de todas as espécies, machos e fêmeas, bem como o mapa com a distribuição histórica dos animais. Outro aspecto é que o leque de espécies representadas é muito mais acurado que o de outras publicações oficiais voltadas a esse tipo de levantamento. O guia permite entender com clareza o grande desafio da identificação das espécies traficadas.
Umas críticas mais ferozes feitas às solturas é a de que animais são soltos fora de sua distribuição histórica por erro de identificação das espécies e pela falta de expertise técnica de quem solta.
A primeira análise que devemos fazer para responder essa complexa questão é conhecer e entender os números dos atores oficiais envolvidos na questão. Tomo por base os dados do estado de São Paulo.
– Criadores amadores de pássaros com autodeclaração de plantel (nascimentos, mortes, escapes, etc.) são cerca de 100 mil, lembrando que cada criador amador pode ter até 100 animais registrados.
– Criadores comerciais com plantéis extensos são mais de 300 (a pergunta é o que acontece com os animais quando um desses fecha? Quem pode receber 100 araras de uma só vez?).
– Fiscalização feita pela Polícia Militar Ambiental, com várias unidades distribuídas em todo o estado, mas que continuamente tem restrições de efetivo, de equipamento ( viaturas e combustível) e, ainda por cima, tem sérias dificuldades para encontrar quem receba os animais apreendidos (tanto assim que a legislação estadual permite que os animais continuem ficando com o infrator).
– Fiscalização do Estado regionalizada, operante, mas com sérias restrições de efetivo.
– Áreas de soltura em todo o Estado: menos de 20!
Como considerar que a soltura técnica é parte do problema, quando o grau de participação dessas entidades é irrisório nesse cenário tumultuado e complexo do tráfico de animais silvestres? Ainda: quantos animais são traficados em todo o Estado? Milhares? Quantos animais recebe uma área de soltura no ano? Centenas?
Percebe a desproporção da situação?
Mas voltemos à questão da identificação dos animais soltos. Vamos fazer um experimento mental e pensar que todos que trabalham nestes empreendimentos, as áreas de soltura, são mesmo muito ruins tecnicamente e que todos os espécimes foram soltos fora de sua área de ocorrência. O que acontece? Os dados científicos mostram que para o estabelecimento de populações é necessário a soltura de um grande número de indivíduos viáveis (machos e fêmeas saudáveis e aptos a reproduzir) e que isso aconteça de forma regular por vários anos. Ou seja, não é nada fácil criar uma população fora da área de distribuição histórica de uma espécie. Ainda mais que estamos tratando de várias espécies críticas e de hábitos muito específicos.
Ainda, e para complicar mais as coisas, é preciso considerar que algumas espécies exóticas (não nativas de uma região) amplamente comercializadas, como o periquito-de-colar (ring neck), podem ter alto poder invasivo, pois não tem predadores naturais, são generalistas, isto é, comem de tudo, e se reproduzem com facilidade. Agora, imagine milhares desses animais sendo criados, vendidos, sem nenhum controle e com contínuo escape de indivíduos? Legal, né? Daqui a pouco aqui vai virar a Austrália (país onde a espécie é nativa), não é mesmo? Quem vai fiscalizar? O que vão fazer? Técnicos da Secretaria de Infraestrutura e do Meio Ambiente vão sair por aí torcendo pescoço de animais? Sim porque a eutanásia é o que eles recomendam. Mais fácil, mais barato… Será mesmo?
E enquanto discutimos os prós e os contras das solturas, o tráfico e o comércio irregular de animais silvestres, com escape de espécies fora de sua área de ocorrência histórica, continuam correndo soltos. Porque afinal é tudo uma questão de dinheiro e a história é sempre a mesma: alguns ganhando muito sem pensar nem um minuto nos prejuízos ambientais a médio e longo prazos (a famosa filosofia do “nóis capota mais não breca…”) e a população pagando a conta porque vive em um meio ambiente cada vez mais mutilado e destruído.
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