Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Como tenho trazido aqui na coluna, áreas de soltura são empreendimentos cujas atribuições vão muito além da liberação de animais silvestres no ambiente natural. Ações de monitoramento, tanto no momento pós soltura como da fauna residente ou visitante, inevitavelmente, promovem uma visão conservacionista para as propriedades privadas que abraçam a ideia de soltura de fauna. Essa visão envolve desde a adoção de ações de recomposição florestal da propriedade em áreas de preservação permanente, como beiras de nascentes, córregos e rios, como a construção de comedores para apoio à fauna decorrente da soltura e até a construção e colocação de ninhos artificiais para aves.
Outro aspecto importante a considerar é que quando uma propriedade se volta para a conservação ambiental, torna-se inevitável olhar para o entorno. Podemos morar em uma propriedade, mas a conservação ambiental e da biodiversidade não se faz nesta escala, mas sim nas “áreas ecologicamente viáveis” do bioma. E o que isso significa na prática?
Conservação de biodiversidade exige áreas contínuas e interligadas de cobertura vegetal com vários tipos de fitofisionomias. Cada espécie tem uma área mínima para manutenção de populações viáveis de acordo com seus hábitos e sua história evolutiva, ou seja, o desenho de como cada espécie age já está estabelecido e pode não responder positivamente às contínuas e drásticas mudanças de uso do solo. Inversamente, espécies invasoras se beneficiam desse cenário, acarretando ainda mais prejuízos à conservação da biodiversidade nativa.
Nesse caso, vale o ditado: uma andorinha sozinha não faz verão! Ou seja, quando cada um faz apenas a sua parte na forma de ações isoladas, sem visão integrada de gestão ambiental, todos perdem e cada vez temos menos e piores serviços ambientais em áreas florestadas. Serviços ambientais que pressupõem a conservação de populações viáveis de fauna e flora nativas.
Mas se algumas propriedades privadas já adotaram a visão conservacionista por estarem envolvidas com ações de soltura, é preciso discutir como promover uma maior escala de conservação ambiental através do engajamento de outras propriedades privadas.
Nesse sentido, é de autoria de um proprietário de área de soltura, advogado de profissão e ambientalista de coração, uma tese de doutoramento que nos auxilia a compreender o status legal de uma área de especial interesse para a conservação ambiental. Transcrevo abaixo alguns dos diplomas legais, apontados pela tese, como conhecimentos fundamentais para a promoção da conservação ambiental em nosso país.
“A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (nº 6.938/1981) foi de extrema importância, ao definir o que se entende por meio ambiente, considerando-o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas assuas formas” (artigo 3º, inciso I).”
“A Carta Maior, como é conhecida nossa Constituição de 1988, outrossim, é incisiva em proteger a função ecológica da fauna silvestre (artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII), conceito jurídico indeterminado fundamental para a compreensão do papel das espécies numa perspectiva biológica ampla, e o protagonismo da propriedade imobiliária (habitat) neste aspecto.”
“A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) determina que são espécies da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas (art. 29, parágrafo 3º).”
“O Código Civil de 2002, no parágrafo 1º do artigo 1.228, estabelece a necessidade expressa do diálogo com as leis ambientais ao determinar que o direito de propriedade deve ser exercido com a preservação da fauna e flora. Uma importante constatação, relativas à preservação da fauna e garantia do equilíbrio ecológico, além de manifestações da função socioambiental da propriedade, são conceitos legais indeterminados, cujos significados serão preenchidos necessariamente pela ciência.”
“Conforme expresso no Código Florestal, Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, uma das funções das áreas de preservação permanente que é facilitar o fluxo gênico da fauna e flora (artigo 3º, inciso II).” O Código Florestal também aponta para necessidade da existência da reserva florestal das propriedades e denomina essa área como “reserva legal”, cuja função é de ser o abrigo e proteção da fauna silvestre (artigo 3º, inciso III).”
De acordo com o autor da tese, a reserva legal é o espaço ambientalmente protegido mais importante do Brasil, representando cento e setenta milhões de hectares de vegetação nativa, e que corresponde a um pouco mais de vinte por cento do território nacional ou três vezes o estado da Bahia, evidente, assim, que a maioria das florestas existentes no país encontra-se em terras particulares. O autor aponta também que, ironicamente, a reserva florestal tem sido, desde a criação, fruto de resistência ao comando legal com fundamento no componente econômico e social da propriedade, ou seja, os proprietários acreditam que o espaço da reserva legal representa um “impedimento” às atividades comerciais das fazendas. Ainda o estudo aponta o Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pelo Código Florestal em forma auto declaratória, como um outdoor de ilusões, resultando em grande preocupação, sob a perspectiva da proteção ambiental, porque valida automaticamente uma informação precária, sem fundamentação técnica.
Mata Atlântica paulista
Mas qual é a realidade sobre a área de reservas legais, por exemplo, para o estado de São Paulo?
Mais de 65% das propriedades privadas do estado tinham menos vegetação nativa do que determina o Código Florestal em 2018. O déficit de vegetação era então estimado soma 1,02 milhão de hectares. Imagine agora, com o desmatamento tendo corrido solto desde então.
Então vejamos, a maior parte das florestas encontra-se em áreas particulares, mas apesar das várias leis que protegem o nosso meio ambiente, os proprietários continuam resistindo à conservação ambiental, mesmo sendo uma exigência legal. E para piorar um pouco as coisas, o bioma da Mata Atlântica já foi tão desmatado que o dispositivo legal de compensação para compor a reserva legal da propriedade em outro local não é mais possível, pois em nenhum lugar do bioma há excedente de floresta atlântica, mas sim, falta. Os números variam, mas estamos falando de pelo menos 464.995,7 hectares de déficit total do estado de São Paulo.
De acordo com dados de literatura científica, atualmente o mecanismo de reservas legais protege cerca de 29% da vegetação nativa em território nacional, mas ainda assim existe em todo o país um déficit de mais de 11 milhões de hectares que precisam ser restaurados, somente para fins de cumprimento de legislação.
É nesse sentido que entra a visão de “restauração ambiental” como uma necessidade urgente. E vejam que nem estamos falando em qualidade de florestas, pois uma floresta recém plantada ou em estágio inicial de regeneração não presta os serviços ambientais da mesma forma que florestas em estágios avançados de sucessão.
Mas, afinal, se essa é uma coluna destinada a discutir casos de segundas chances para fauna, é preciso que fique claro que isso só possível se houver uma segunda chance para a Mata Atlântica. E vejam o tamanho do desafio, porque como já apontamos no início deste artigo, boa parte das espécies da que vivem na Mata Atlântica são muito sensíveis a mudanças na qualidade das florestas.
Um dos princípios fundamentais do direito, mas também de outras áreas de conhecimento humano, é o “bem comum”. Ações que envolvem a fauna silvestre se traduzem em empatia com a causa da restauração ambiental e favorecem a busca do bem comum. A proteção da fauna e a conservação da biodiversidade são promotores de sustentabilidade e, até mesmo em nível pessoal, estimulam nossa solidariedade, pois a acolhida de animais silvestres como a simples oferta de uma fruta em um comedouro nos torna mais humanos e, portanto, mais aptos e focados a promover o bem comum. A Mata Atlântica agradece.
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