Áreas de soltura e casos de predação

Nossa história de hoje começa de forma clássica, com a retirada dos periquitões-maracanã (Psittacara leucophthalmus) do forro de casas de humanos. O caso é meio trágico, pois além de serem retirados, foram abandonados em uma caixa de papelão na porta de outra residência, que nada tinha a ver com os animais. Os moradores do segundo imóvel, depois de diversos contatos sem sucesso para a entrega dos animais em alguma instituição do sistema de fauna do poder público, viajaram de moto, com as aves ainda na mesma caixa, até uma fazenda e de lá para uma área de soltura em outro município. Até aquele momento, já haviam sido envolvidas, nesse resgate, mais de seis pessoas em dois municípios.

Ao chegar à área de soltura, a prioridade foi limpar e alimentar, pois claro, as aves ainda estavam no estágio de comer papinha. Alguns dias depois, outro contato para a recepção de novos filhotes de periquitão. No caso destes, a história era bem diferente, pois apesar de terem sido retirados do forro, sendo que um dos filhotes foi eletrocutado, os animais foram cuidados pela família com todo o cuidado e esmero. Porém, esse se tornou exatamente o problema, pois ficavam voando em cima das pessoas, sem medo de nada.

Na área de soltura, os periquitões foram reunidos aos periquitões do primeiro grupo, que agora já se alimentavam sozinhos, e transferidos para um viveiro de aclimatação e treino de voo para preparação para soltura. Os animais adoraram e em pouco tempo formaram um bando coeso, se divertindo dentro do viveiro, tomando banho, se alimentando juntos e explorando todos os cantinhos. Ué, mas não era para ser uma história triste?

Área de soltura

Uma área de soltura ativa recebe vários tipos de animais destinados à soltura, desde avifauna – situação mais comum – até cobras. Após a soltura, alguns indivíduos são predados. As boas práticas indicam que deve haver um ponto de equilíbrio nessa predação, idealmente permitindo que, pelo menos, alguns indivíduos soltos tenham sucesso reprodutivo, o que implica em sobreviver por pelo menos um ano. Como boa prática adicional, as áreas de soltura devem estar localizadas em fragmentos de vegetação que viabilizem a vida dos animais soltos, inclusive permitindo sua dispersão através de corredores ligados a outras áreas florestadas. Por fim, uma outra boa prática importante é a realização do monitoramento, tanto da fauna a ser solta, como da fauna residente na área.

A presença de fauna silvestre é uma das características de uma floresta saudável. Por razões variadas, fauna atrai fauna. Portanto, mesmo não fazendo muitas solturas, uma área de soltura oferece vantagens para a fauna que frequenta a área, ou seja, tem água, tem uma cobertura vegetal diversa e acolhedora, tem controle de fauna doméstica errante – esse último sendo um fator diferencial para o bem estar da fauna silvestre. É comum também, em áreas de soltura, o oferecimento de alimento, seja na forma de comedouros, seja na forma de plantas atrativas, como bananeiras e goiabeiras. Assim, se eu fosse um animal silvestre, adoraria estar em um local desses.

Outra boa prática em áreas de soltura é a construção de viveiros reforçados com telamento resistente, exatamente para evitar a entrada de predadores enquanto os animais estão em aclimatação. Os viveiros também devem ter um sistema para a saída controlada dos animais destinados à soltura, pois assim só saem aqueles que estiverem aptos.

Entretanto não é incomum o “aprendizado” de animais silvestres sobre a “disponibilidade de comida” em viveiros pré-soltura. Já tive oportunidade de observar cachorros-do-mato, sentadinhos, pacientemente aguardando a movimentação dos animais para soltura. Já presenciei ação de soltura com ave de rapina pegando o animal no exato momento da liberação, causando ”aquele” mal-estar nos humanos envolvidos.  A reprodução assistida de espécies de aves através da instalação de caixas-ninho em área com a presença de macacos-prego pode terminar em situação desfavorável para os filhotes na caixa, porque, se tem uma espécie que sabe “tocar o terror”, são eles. Mas apesar disso, das muitas espécies de fauna silvestre com populações decrescentes, o macaco-prego é uma delas.

Voltemos aos nossos periquitões no viveiro…

Adivinhem qual o desfecho da história dos nossos periquitões? Algum silvestre, calmamente na calada da noite, puxou a base da tela, cavou um pequeno túnel por baixo dela e fez a festa! Na amanhã seguinte, dos cinco animais, restava apenas um! Restou também a tremenda sensação do esforço perdido, da tristeza de saber que os animais tiveram uma vida curta, bem distante da meta de uma temporada reprodutiva, não é mesmo? Sem contar o pensamento recorrente em tentar descobrir o culpado, que agora seguramente está bem alimentado! Nesse caso o suspeito não foi o mordomo, mas um gambá!

Nesse momento, é preciso refletir que os gambás vêm experimentando um declínio em sua população fortemente impactada por perturbação humana, eletrocussões, atropelamentos e por predação por fauna doméstica, em especial por cães. Os gambás também são vítimas de doenças como toxoplasmose, impactando inclusive os filhotes que nascem de indivíduos portadores. Em resumo, não é fácil ser um gambá nos dias de hoje, isto só pensando nas espécies do gênero Didelphis, pois cuícas e catitas estão em uma categoria ainda mais crítica.

Os personagens principais de nossa história foram periquitões-maracanã (Psittacara leucophthalmus) e gambás (Didelphis sp), espécies muito comuns em ações de soltura. Hoje, um foi presa e o outro predador. Então, o que fazer? Escolher entre o inseto e o inseticida?

Claro, reforçar os viveiros, controlar a área de entorno, mas a relação presa-predador vem sendo aperfeiçoada a milhões de anos e é mais um exemplo de quanto as perturbações ambientais causadas por nossa espécie são difíceis de remediar. Por mais boa vontade que tenhamos, uma vez que um animal se desvia do seu ciclo natural de vida, e vai parar em um viveiro, fica difícil controlar todas as variáveis que podem impactar a sobrevivência dos animais silvestres. Bom mesmo é animal silvestre em vida livre, vivendo em ambiente equilibrado.

Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).