Aracnídeos podem ser aliados da saúde humana, inclusive contra o câncer

Há muito tempo existem as descrições das condições clínicas dos acidentes com animais peçonhentos. Durante os séculos 19 e 20, o brasileiro Vital Brazil realizou importantes descobertas que o deixariam mundialmente famoso. Ele foi o responsável por descobrir a especificidade do soro antiofídico, quando notou que o soro produzido a partir do veneno da naja não tinha efeito sobre os venenos das serpentes brasileiras. Dentre suas descobertas, também destacamos o desenvolvimento dos soros contra picadas de aranhas e o tratamento para picada de escorpião.

O que são venenos

Venenos são estruturas quimicamente complexas e muito ainda está por ser descoberto em se tratando das peçonhas encontradas em invertebrados. De modo geral, os venenos animais são uma mistura de moléculas bioativas que apresentam uma elevada afinidade para múltiplos alvos, sejam eles presas ou inimigos. Portanto, podem ser utilizados em estudos de processos fisiológicos e patológicos e representam compostos promissores para medicamentos.

Venenos na fabricação de medicamentos

Nas últimas décadas, diversos estudos já foram publicados indicando o potencial de alguns compostos encontrados nos venenos de aranhas e escorpiões para o tratamento de câncer, umas das doenças que mais ameaça a vida e um problema de saúde pública ao redor do mundo.

No Brasil, umas das espécies de aranhas com importância em saúde é a Phoneutria nigriventer, popularmente conhecida como aranha-armadeira devido ao seu comportamento característico de levantar os dois primeiros pares de pernas quando se sente ameaçada (saiba como identificar a aranha-armadeira). Sua toxina, embora perigosa, tem se mostrado um verdadeiro tesouro e vem sendo estudada há mais de 60 anos. O resultado desse processo é a identificação de mais de 40 peptídeos neurotóxicos diferentes, tendo alguns de seus componentes potencial para preparação de futuros medicamentos para o tratamento de variados tipos de câncer.

Uma das características observadas em alguns acidentes com Phoneutria nigriventer, especialmente em homens jovens, é o priapismo – uma ereção involuntária e dolorosa. Diante disso, estudos realizados por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) identificaram um potencial fármaco para o tratamento de disfunção erétil. O estudo vem sendo conduzido há mais de 20 anos e o potencial fármaco já foi aprovado na primeira fase de testes (de um total de três) para um novo medicamento. Essa descoberta mostra-se importante como um medicamento que possa auxiliar homens que, por algum motivo, não podem fazer uso dos medicamentos atualmente disponíveis no mercado.

Aranhas-caranguejeiras da espécie Vitalius wacketi = Tekoapora wacketi (Mello-Leitão, 1923) encontradas no litoral de São Paulo vêm sendo estudadas há algumas décadas por pesquisadores do Instituto Butantan e do Hospital Israelita Albert Einstein, que buscam avaliar o potencial terapêutico de uma substância encontrada em seu veneno. Após isolarem as moléculas componentes e conseguirem reproduzi-la de forma sintética com técnicas desenvolvidas por cientistas brasileiros, os pesquisadores encontraram uma molécula que se mostrou promissora no combate à leucemia.

Isso por si só já é uma ótima notícia. Porém, em testes iniciais, o componente também parece ser uma alternativa menos danosa e custosa quando comparada a alguns tratamentos atuais. Apesar dos resultados promissores, os pesquisadores ainda estão em busca de financiamento para que mais testes sejam feitos.

E não só para o tratamento de câncer em humanos que os venenos das aranhas têm se mostrado como um aliado. No início dos anos 2000, pesquisadores encontraram no sangue da aranha-caranguejeira brasileira Acanthoscurria gomesiana, a gomesina, molécula bioativa com alto potencial bactericida e fungicida.

Mais recentemente, em 2018, a gomesina revelou-se como forte candidato a medicamento que pode salvar uma espécie lá da Austrália: Sarcophilus harrissi, o famoso diabo-da-Tasmânia. O popular marsupial, que é a inspiração do personagem Taz, da animação Looney Tunes, vem sendo dizimado devido a um câncer contagioso que deforma o focinho e a boca desses animais impedindo-os de se alimentar. A doença, ainda sem tratamento, pode levar a extinção da espécie e a salvação pode vir de uma aranha do outro lado do planeta.

Venenos de escorpiões no tratamento de câncer

Biomoléculas presentes no veneno de diferentes espécies de escorpiões também têm se mostrado como potenciais agentes no tratamento de cânceres in vitro e in vivo. Diferentes estudos produzidos ao longo dos anos avaliaram o efeito e a eficácia do veneno de escorpiões em cânceres como leucemia, linfoma, de mama, nos pulmões, neuroblastoma, pâncreas, próstata, entre outros. Variados componentes da peçonha desses animais induzem a paragem do ciclo celular, inibição do crescimento e à apoptose (morte programada das células).

A espécie Tityus serrulatus, o famoso escorpião-amarelo, causador de diversos acidentes no Brasil, também já teve os componentes de seu veneno estudado algumas vezes (veja artigo sobre escorpiões amarelo no Brasil). Alguns de seus componentes demostraram alta eficácia no tratamento de neuroblastoma em ratos, enquanto outros inibiram o crescimento de cinco diferentes tipos de cânceres humanos.

Como o cavaleiro Milo, de Os Cavaleiros do Zodíaco, tinha um grande orgulho em ser um cavaleiro de ouro, ele tornou-se implacável contra seus inimigos. Assim também podemos entender os escorpiões de outras formas, para além da importância médica.

Todas essas descobertas são provenientes de estudos conduzidos durante décadas por diferentes pesquisadores ao redor do mundo. E apesar de todo esse potencial, muitas dessas pesquisas ainda carecem de financiamento, pois é necessário produzir as substâncias de forma sintética, em laboratório, ou manipular os animais in vivo. E tudo isso começa conhecendo a nossa biodiversidade, um caminho ainda longo a ser percorrido.

Ademais, todas as formas de vida coexistem no planeta Terra e nenhum aracnídeo existe de fato para nos fazer mal.

Referências

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