Por Letícia Koproski¹ e Fernando Hardt²
¹Veterinária com especialização em Clínica Médica e Cirúrgica de Animais Selvagens. É mestra e doutora em Engenharia Florestal com ênfase em Conservação da Natureza, além de pesquisadora do Instituto Brasileiro para a Medicina da Conservação – Tríade. Integra a REET Brasil
²Biólogo e doutor em Engenharia Ambiental pela Universidade Ca´Foscari de Veneza (Itália). Atualmente, executa monitoramentos ambientais de cetáceos e quelônios em terminais portuários do Sul do Brasil. Integra a REET Brasil
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Em julho deste ano, Astro, o primeiro peixe-boi-marinho reintroduzido no Brasil, foi atropelado pela 20ª vez entre o litoral de Sergipe e da Bahia. Astro é um ícone! E o seu monitoramento realizado desde 1994, quando retornou ao ambiente natural, permite entendermos o quanto ele tem sido acometido pelos impactos antropogênicos.
Vinte atropelamentos é um infeliz dado de estatística registrado para qualquer animal, pela sua própria qualidade de vida, mas especialmente com Astro, considerando todos os esforços e estratégias para a conservação da espécie ameaçada de extinção que ele representa. No entanto, na contramão da conservação, não são raros outros registros de interações de embarcações com peixes-bois e que resultam em transtornos clínicos que ameaçam a sobrevivência dos indivíduos.
Além dos impactos sobre os sirênios (animais da ordem Sirenia), as colisões são comprovadamente desafios para a conservação de cetáceos, quelônios e tubarões no modal aquaviário não só no Brasil, mas globalmente. Elas são uma das principais causas de mortalidade de fauna aquática e de ameaça à biodiversidade no oceano. Nesses impactos, nem sempre os animais morrem imediatamente. Elas podem causar marcas, lesões, amputações, perda de função de estruturas, infecções, fraturas, politraumatismos, quadros de choque, chegando até a morte dos animais.
O avanço nos estudos de monitoramento, saúde e mortalidade de fauna marinha permite a identificação dos níveis das interações e das espécies acometidas. Atualmente, com relação às espécies mais afetadas, já é sabido que existem registros de colisões com todas as espécies de tartarugas que ocorrem no Brasil – tartaruga-verde (Chelonia mydas), tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea), tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata) e tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea).
Já entre os registros de colisões para os grandes cetáceos que se distribuem por águas jurisdicionais brasileiras, estão a baleia-franca (Eubalaena australis), a baleia-fin (Balaenoptera physalus), a baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae), a baleia-minke (Balaenoptera acutorostrata), e o cachalote (Physeter macrocephalus). Dentre os pequenos cetáceos, configuram os registros para o golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) e o boto-cinza (Sotalia guianensis).
Ressalta-se que muitas das espécies com registros de interação no modal aquaviário estão sob algum nível de ameaça, sendo algumas delas classificadas como “Em Perigo”, como a tartaruga-de-pente, a baleia-fin, a baleia-franca e o golfinho-nariz-de-garrafa. Inclusive, algumas delas foram classificadas como “Criticamente em Perigo”, no caso da tartaruga-de-couro, tornando ainda mais grave a problemática das interações para a conservação dessas populações.
Chama a atenção um estudo realizado com 350 tubarões-baleia (Rhincodon typus), de 2005 a 2019, monitorados com transmissores nos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Nessa relevante pesquisa, os maiores índices de mortalidade dos indivíduos foram registrados em áreas de sobreposição de rotas de migração da espécie com áreas de maior concentração de navios. Os pesquisadores acreditam que em função dos óbitos nessas áreas terem acontecido em eventos repentinos, eles muito provavelmente foram ocasionados por colisões com embarcações.
Em geral, existe esse maior potencial de colisões em regiões hotspots – de intenso tráfego marítimo, como áreas portuárias e rotas de navegação que se sobrepõem às rotas migratórias das espécies. Ainda assim, devido ao grande fluxo de embarcações para atender a demanda do comércio mundial, a distribuição das colisões é ampla.
Maioria das colisões não são detectadas
Apesar dos avanços com relação à identificação das espécies que podem ser acometidas, a grande maioria das interações com embarcações não é detectada e nem reportada. Se começarmos a colocar em proporção que o transporte marítimo é responsável pela movimentação de 80% de todas as cargas do comércio mundial, começamos a ter a perspectiva da quantidade de potenciais ocorrências e o grau de ameaça sobre a fauna, seja com o transporte costeiro, de cabotagem ou de longo curso.
As interações por impacto com grandes embarcações, navios cargueiros, navios de pesca e petroleiros podem não ser percebidas, pois não geram energia suficiente para causar desestabilização nos veículos de transporte. Nos casos em que existem interações com as hélices, elas podem ser mais facilmente identificadas por poderem causar cortes nos animais e gerar cicatrizes possíveis de serem vistas na avaliação tanto dos animais vivos, quanto mortos. Porém nem sempre chegamos a ver esses animais, pois grande parte das carcaças não chega a encalhar nas praias, não sendo contabilizadas em programas de monitoramento. De fato, a taxa de detecção de carcaças para algumas espécies de baleias no hemisfério norte, por exemplo, varia de 5% a 17% do número real de animais mortos. E mesmo quando recolhidas, em muitos casos, elas encontram-se em avançado estágio de decomposição tornando a avaliação inconclusiva quanto a origem das marcas das interações.
Como reduzir as colisões
Já se sabe que existe relação direta do potencial de colisão, com a velocidade de deslocamento das embarcações e a possibilidade de fuga dos indivíduos. E nesse universo já foram registradas colisões até mesmo com embarcações de pequeno porte, como moto aquáticas, e sem motor de propulsão, como barcos à vela.
Sendo a velocidade de deslocamento das embarcações um dos pontos-chaves para a redução do número de colisões, ela tem sido utilizada como uma eficiente medida mitigadora de impactos antropogênicos em áreas com alto índice de ocorrência de baleiasfrancas no Atlântico Norte (Eubalaena glacialis).
E ainda, na costa da Califórnia e na baía de Cork, na Irlanda, soluções tecnológicas inovadoras baseadas em ciência estão sendo colocadas em prática na tentativa de diminuir a velocidade das embarcações em áreas de intenso fluxo de navio e animais para evitar as colisões.
Nesses locais, projetos de vigilância acústica baseados na captura do som emitido pela fauna por receptores instalados em boias, que se comunicam com satélites e processadores de informação, identificam em tempo real, por meio de inteligência artificial, a localização dos animais. Essas informações são imediatamente repassadas para as tripulações para que possam reduzir a velocidade das embarcações e evitar as interações indesejadas.
No Brasil, tentativas de estabelecimento de limites também têm sido implementadas. Referente aos procedimentos de aproximação e de acompanhamentos dos animais devem ser consideradas as normas descritas na Lei nº 7.643/1987, a Portaria Ibama nº 117/1997, alterada pela Portaria nº 24/2002, o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Mamíferos Aquáticos (ICMBio, 2011) e o Manual de Boas Práticas em Interação com Mamíferos Marinhos (ICMBio, 2019).
De acordo com o Manual, por exemplo, após o encontro de um grupo de mamíferos aquáticos, a aproximação da embarcação motorizada deve ser realizada com velocidade constante e não se deve navegar em velocidade superior a cinco nós (aproximadamente 10 km/h), nem realizar mudança brusca de direção. Deve ser mantida uma distância mínima de 50 metros de sirênios e 300 metros de cetáceos. Ainda, não se deve acompanhar com o motor ligado qualquer grupo de animais por mais de 30 minutos (ou 15 minutos caso sejam observados filhotes), ainda que respeitadas as distâncias supra estipuladas.
Em tempo, vale lembrar a importância do estabelecimento e da manutenção de uma rede articulada de atendimento de animais aquáticos constituída de centros de manejo de fauna, unidades de estabilização e de centros de reabilitação de fauna marinha como medida mitigadora, visto que muitos indivíduos não morrem e podem necessitar de atendimento emergencial especializado. Basta ver o Astro, nosso sobrevivente!
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