Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Em 29 de maio, publiquei aqui no Fauna News o artigo “Os mamíferos aquáticos da Amazônia: fatos e curiosidades”. Nele, apresentei as espécies e comecei a detalhar um pouco da história e da convivência do boto-vermelho, ou simplesmente boto, com os seres humanos. Vou seguir abordando as ameaças à sobrevivência da espécie.
Apesar dos conflitos e da alta incidência de captura acidental em redes de pesca, os botos apresentavam, historicamente, uma população estável e abundante ao longo da sua distribuição. Entretanto, outras ameaças, como a alteração ambiental, não só devido à poluição dos ambientes aquáticos, mas principalmente por barramentos de rios para diferentes usos, sobretudo para a construção de barragens com fins hidrelétricos, levaram esses golfinhos a classificação de espécie vulnerável tanto pela IUCN quanto pelo Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no Brasil. Posteriormente, a espécie foi reclassificada pela IUCN como Dados Insuficientes (DD) por não existirem informações sobre o tamanho e o declínio populacional e pela ausência de parâmetros biológicos que pudessem avaliar seu real status de conservação.
Em 2018, foi feita uma revisão do status de conservação do boto. De posse de novas informações, não apenas sobre a biologia do animal, mas também sobre o declínio populacional e o agravamento de outras ameaças, a espécie foi reclassificada para uma categoria de maior perigo, Ameaçada (EM).
O que aconteceu para que uma espécie de mamífero aquático de grande porte, endêmica dos rios da Amazônia e considerada abundante passasse a ser classificada como uma espécie ameaçada?
Podemos listar vários fatores que, ao longo das últimas décadas, contribuíram para a redução gradual do número de botos-vermelhos nos rios da Amazônia. Nesta oportunidade, vou abordar a ameaça que considero a mais preocupante e que, certamente, afetou de forma mais rápida e drástica as populações de boto: sua captura direta. Esse golfinho passou a ser usado como isca na pesca de um bagre conhecido na Amazônia brasileira como piracatinga ou urubu-d‘água. Até então, os botos nunca haviam sido caçados nem mortos com um propósito específico.
A piracatinga (Callophysus macropterus) é um bagre ou peixe-liso, sem escamas, com tamanho máximo de 40 centímetros bastante abundante nos rios de águas-brancas e, até então, sem valor comercial. Até o final da década de 1990, não era pescado nem comercializado no Brasil.
Esse peixe, além de ter ampla dieta, tem hábitos alimentares necrófagos e pode ser bastante voraz quando encontra um animal morto e até mesmo em decomposição. Por isso, os ribeirinhos e nativos da região não o consomem e tampouco é encontrado nos mercados e feiras regionais.
Além da carne do boto, a principal isca, os pescadores utilizam também o tucuxi e o jacaré (jacaré-açú, Melanosuchus niger, e o jacaré-tinga, Caiman crocodilus).
Essas espécies estão protegidas desde a promulgação da Lei de Proteção à Fauna (no 5.197, de 3 de janeiro de 1967), embora exista uma legislação específica aos cetáceos, a Lei no 7.643, de 18 de dezembro de 1987, que proíbe a pesca e o molestamento de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras.
A pesca da piracatinga teve seu início no alto Solimões, no final da década de 1990, mas os primeiros registros no Brasil só foram feitos a partir de 2000. Inicialmente, toda a produção da piracatinga era exportada para a Colômbia, para substitui outro bagre conhecido nesse país como capaz (Pimelodus grosskopfii), muito apreciado na culinária colombiana e que foi sobre-explorado, levando à sua extinção comercial.
Com o aumento da demanda, a produção de piracatinga praticamente quadruplicou em menos de cinco anos; de 1.600 toneladas em 2007 a 4.400 toneladas em 2011. Somente um frigorífico de Tefé comercializou, nos anos de 2005 e 2013, 72.000 e 177.845 quilos de piracatinga respectivamente, o que representa cerca milhares de botos mortos por ano nessa área.
Essa pescaria acabou tornando-se renda complementar de alguns grupos de pescadores nos períodos de baixa produtividade pesqueira, na época do defeso e em substituição a outras espécies de peixes comerciais importantes já em declínio, como o pirarucu e o tambaqui. Pouco tempo depois do início dessa exploração, a piracatinga já estava sendo comercializada nos mercados e feiras de Manaus e até mesmo em grandes redes de supermercados em outros Estados do Brasil, com o nome fantasia de “douradinha” .
Estudos genéticos comprovaram as fraudes na denominação e na comercialização da piracatinga como “douradinha”, enquanto monitoramentos de longo prazo de botos revelavam que em algumas regiões da Amazônia as populações estavam sendo dizimadas. Foram constatadas reduções rápidas e drásticas no número desses golfinhos e que o único fator novo na equação era o uso deles como isca na pesca desse bagre necrófago.
O governo do Brasil, por meio da Instrução Normativa Interministerial no 6, de 17 de junho de 2014, dos ministérios do Meio Ambiente e da Pesca e Aquicultura, estabeleceu uma moratória da pesca da piracatinga em águas jurisdicionais do país e da comercialização do peixe em todo o território nacional a partir de 1º de janeiro de 2015.
Essa IN proibia durante cinco anos a pesca, estocagem, transporte e comercialização da piracatinga com os objetivos de identificar técnicas e métodos ou alternativas produtivas ambientais, econômico e socialmente viáveis e sustentáveis para o exercício e o controle da atividade pesqueira desse peixe. Sabemos que nesse período houve redução dessa pesca e da captura de botos, mas a comercialização, mesmo em menor escala, continuou com filés de piracatinga embalados como surubim e com nome de outros pescados regionais, em clara violação aos direitos do consumidor.
Estava prevista na IN a avaliação, pelo Ministério do Meio Ambiente, dos efeitos dessa moratória para a recuperação das espécies de botos e jacarés. A moratória da piracatinga está suspensa desde janeiro de 2020, sem que as premissas de sua criação fossem cumpridas ou que os órgãos de pesca, assim como as associações de pescadores, apresentassem alguma garantia do não uso dos golfinhos como isca e da sua proteção e integridade.
O governo da Colômbia, principal mercado da exportação da piracatinga pelo Brasil, proibiu indefinidamente a entrada desse peixe em seu território, alegando alto teor de mercúrio na carne do pescado. Sem seu principal comprador, a piracatinga deverá entrar pesadamente no mercado brasileiro. Com qual nome? Pescada de que maneira? Usando qual isca?
Será que o consumidor brasileiro continuará comprando gato por lebre? Pagando caro por um produto incorretamente rotulado, comendo um pescado capturado ilegalmente e que, por ser necrófago, pode estar contaminado e ainda conter altos teores de mercúrio? Quem responderá a essas questões?
Essa pescaria certamente representa a maior exploração desse golfinho pelo homem desde a chegada dos europeus à Amazônia, colocando, pela primeira vez, a espécie em situação direta de ameaça para a sua conservação. Não podemos deixar o boto da Amazônia ser apenas uma lenda!
Vamos proteger nosso patrimônio e a fauna aquática Amazônica.
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