Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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Amigo leitor, escrevo nesta coluna com a missão de promover a ideia de que solturas de animais silvestres são uma segunda chance para que, eles, os silvestres, possam viver com dignidade o curso final de suas vidas. Seguindo essa linha de raciocínio, a trajetória de cada animal silvestre seria a de um ser que um dia foi livre, passou por um período de escravidão e abuso, daí a expressão “cativeiro” e, com sorte, é libertado após um processo de reabilitação.
Passemos então a investigar algumas das condições que caracterizam esse período de escravidão ao qual submetemos nossos animais silvestres pelas mais diferentes razões, que vão desde vaidade, ignorância até a pura e simples cobiça e ganância.
O primeiro passo que o animal tem que superar é a traumática mudança de habitat. Antes era livre, vivia com o seu grupo ou familiares, em um ritmo natural e, de repente, tudo muda! Um papagainho que só se relacionava com seus pais, de uma hora para outra é manipulado por mãos humanas que o colocam em uma caixa junto com muitos outros, dentro de um carro, normalmente escondido em um porta-malas escuro e com pouco ar. É um verdadeiro caso de sequestro! Só que, diferentemente dos filmes, muitos morrem de fome, sede, medo, sem nunca serem resgatados.
Se nosso papagainho sobrevive a essa brutalidade, está com sorte, pois agora começa a fase do cativeiro, que, como em bom filme de escravidão humana, pode durar décadas! A essa altura, se sobrevivem, já desenvolveram uma transferência para o ser humano e esqueceram o que eram.
Exatamente como nos sequestros humanos, o sequestrado pode se identificar com seus sequestradores, no caso humano essa situação psicológica recebe o nome de Síndrome de Estocolmo. Mas a saga de nosso papagainho está longe de terminar, porque agora que ele já esqueceu o que é, vai ser vendido! Alguns são, inclusive, vendidos com correntinhas em um dos pés. Porque, claro, uma vez que escravo foi comprado por alguém, não pode fugir!
Ao chegar no local de seu cativeiro, ele ou ela recebe um nome. Porque agora não são mais animais, mas parte da família! E como tal, a primeira providência é comer o que todos comem na casa: pizza, café com leite, girassol, salgadinho, enfim, todo o tipo de “comida saudável”. E lógico, ele ou ela passa a ter também uma “casinha”, com tudo o que é preciso para viver nesse novo local.
E aí começa uma relação de um tipo estranho de amor entre o “dono” e seu “pet”. O dono fala um idioma, o pet, outro. Mas o dono nem nota e acha o que o pet é a criatura mais linda do mundo e que entende tudo o que é falado na casa e, portanto, participa ativamente em tudo o que acontece.
Um dos aspectos mais distintos dos seres humanos é sua curiosidade. Os pets são um clássico exemplo disso: quanto mais exótico, mais interessante para um humano! Mas todo o interesse acaba um dia e aí a coisa começa a ficar complicada para o nosso pet. É nessa hora que o “peso de cuidar” de uma outra criatura viva começa a ser notado. Com as coitadas das plantas é mais fácil, elas não gritam nem pedem água, também não atacam os donos, apenas morrem de sede e maus tratos.
Mas com os pets a coisa é um pouquinho mais complicada. Imaginem um macaquinho, um sagui, nessas condições de começo de abandono. De repente, ele não é mais o centro das atenções e caramba, faz cocô, faz xixi, e além de tudo pode ser mal educado e até mesmo morder! De centro das atenções passa a ser um estorvo. Aí limpar a tal da casinha já não parece tão legal. – Caramba, pensa consigo o “dono”, já joguei uma banana para ele. Que mais ele pode estar querendo?
Que estorvo passa a ser este pet.
E cabe aqui um parêntese. Como muitos desses pets acabam nos centros de reabilitação com gaiola e tudo, que show de horrores encontramos! Gaiolas enferrujadas, amarradas com fio de energia e todo o tipo de arame, até mesmo o farpado. Como comedores e bebedouros, todo o tipo de lixo: xícaras quebradas, restos de luminárias, garrafas plásticas. É sempre na hora da gaiola que eu me pergunto que estranho amor é esse que faz com que todos os anos milhões de animais sejam retirados da natureza para ficarem pendurados em algum lugar sujo e insalubre, dentro de gaiolas ainda mais degradantes. Seja qual for o modelito da “senzala portátil”, a nossa abominável gaiola é sempre suja, muito suja mesmo! E não estou falando de uma sujeira de um dia; estou falando de sujeira de décadas, acumulada tempo suficiente para corroer uma bandeja metálica que, ironicamente, deveria ser para retirar a sujeira da gaiola e não a manter.
Depois de tudo isso, quando nosso pet chega a um centro de reabilitação, como retirar décadas de memórias de maus tratos de um cérebro? Como convencer um pet de que, agora, ele não é mais ele, mas sim um papagaio? Que papagaios não comem pizza e não gostam de café com leite. Sem mencionar a questão sanitária, porque quando um animal está deprimido e não come nem bebe água, administrar um medicamento pode ser um tremendo desafio. Tem inclusive animal que não acredita que está sendo solto, quase que olha para os humanos à volta e como que pergunta “mas é para ir embora mesmo?”, “estou mesmo livre?”. Situação difícil, não é mesmo?
Mas claro que, quando uma soltura dá certo, eles vão e conseguem viver de verdade, sendo o que nasceram para ser e não mais pets, amigo leitor. Que alegria genuína e duradoura. Sem palavras para descrever.
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