Por Mariane Rodrigues Biz Silva
Bióloga, especialista em Sustentabilidade e mestra em Ecologia. É sócia-diretora na ProHabitat Assessoria Ambiental, organizadora do AeroFauna (encontro sobre Risco de Fauna no Brasil) e integrante da Diretoria Nacional da REET Brasil
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O título deste artigo é intencionalmente provocativo e certamente irritante para os amantes da aviação, mas irei explicar. Obviamente, o setor aéreo não está literalmente traficando animais, entretanto ele é um dos meios de transporte utilizados por criminosos. Então, tem sua parcela de participação e responsabilidade.
Você pode pensar: “mas o controle desses crimes é para ser feito pela polícia ou pelos órgãos ambientais, como o Ibama”. Eu concordo com esse argumento, mas ele não apresenta o cenário completo. A aviação não está capturando, vendendo ou comprando animais e plantas ilegalmente (não esqueçam dos fósseis e demais materiais cuja apanha e utilização não são autorizadas, de acordo com a legislação brasileira). De fato, há, nos grandes aeroportos, profissionais do Ibama e da Polícia Federal atentos para esse assunto. Contudo, pelo seu negócio/business ser uma via do tráfico, o setor aéreo tem a responsabilidade socioambiental, e eu diria até a obrigação, de adotar ações mais concretas e coordenadas de supervisão, mitigação e coibição.
E os outros modais? Com certeza todos podem e são usados pelos traficantes de fauna. Apesar de não termos tantos estudos robustos sobre o tráfico no Brasil, por conta das dificuldades de obtenção de dados (assunto que não vou abordar aqui), há apontamentos de que o rodoviário seja a via principal, já que a maior parte desse comércio ilegal abastece o mercado interno. Ainda assim, a aviação tem um papel importante por ser vista como um bom custo-benefício pelos criminosos, especialmente para deslocamento em longas distâncias, já que: é rápida (importante para os animais vivos), tem muitas rotas (dificulta o rastreamento), propicia uma margem boa de lucro, tem baixo risco de apreensão e é possível subornar funcionários do setor aéreo para facilitação do transporte.
Aqui no Fauna News há diversos artigos ótimos que explicam a gravidade do comércio ilegal da biodiversidade. Então, vou apresentar apenas três números para contextualizar o assunto. O tráfico da biodiversidade está entre os cinco maiores comércios ilegais mundiais. Segundo a aliança United for Wildlife, estima-se que movimente entre 50 e 150 bilhões de dólares por ano no mundo (esse dado varia bastante de acordo com a fonte, mas são todos números exorbitantes). Conforme um relatório do Renctas, de 2001 (portanto, dado desatualizado), estima-se que 38 milhões de animais por ano são retirados ilegalmente da natureza no nosso país, e é importante ressaltar que esse crime muitas vezes está associado a outros, como lavagem de dinheiro.
E o problema é só para os animais e plantas? Não, o trânsito desses organismos e partes deles nos aeroportos e aviões afeta diretamente: a segurança do setor; a saúde dos passageiros e funcionários com a disseminação de zoonoses, e a reputação do aeroporto/companhia aérea. O tráfico também impacta comunidades locais por conta da exploração de vulneráveis por criminosos, pelo estímulo à corrupção e pela retirada de meios de subsistência legítimos, como o ecoturismo e o recolhimento de impostos dessa atividade. Adicionalmente, a inserção de espécies exóticas, o prejuízo à biodiversidade e aos serviços ecossistêmicos por ela prestados, atingem todo o planeta.
Acredito que já apresentei justificativas suficientes para chamar a atenção sobre a importância da atuação da aviação, correto? Mas o que o setor pode fazer se não tem o poder de polícia? Vamos lá! Os criminosos capturam os animais e coletam as plantas em diversos lugares, e, para transportarem, usam as aeronaves (além de outros veículos, como já mencionei). Nos aeroportos, essas pessoas, suas bagagens e cargas passam por funcionários e pontos de controle, como portões de inspeção e aparelhos de raio-X. Assim, essas etapas propiciam diversas oportunidades para a detecção e interceptação de criminosos. E para isso acontecer, o primeiro passo é a conscientização e o treinamento dos profissionais do aeroporto.
Há ainda uma rede de iniciativas se formando pelo mundo que a aviação nacional pode se apoiar. Em 2014, foi criado o Transport Taskforce com o objetivo de engajar o setor de transporte a identificar e desenvolver soluções de combate ao tráfico de animais. A organização é composta por mais de 100 stakeholders, incluindo aeroportos (apenas um brasileiro – o Aeroporto Internacional de Brasília – ingressou em 2021), companhias aéreas e associações, como a Airports Council International (ACI) e a International Air Transport Association (IATA), que assinaram a Declaração de Buckingham Palace. O documento é composto por 11 compromissos, incluindo aumento de conscientização, ações e elaboração de relatórios. Ainda, baseada nesse documento, a IATA desenvolveu uma certificação voluntária para as companhias aéreas, chamada Illegal Wildlife Trade (IWT), a qual nenhuma empresa brasileira está listada como certificada.
No Brasil, a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), em 2001, elaborou o 1º Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre. O documento evidenciou que os animais são contrabandeados do nosso país para outros, não-signatários da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites). Há até mesmo o tráfico para países signatários, onde os infratores conseguem documentações falsas e, em seguida, os animais são exportados. Outro dado importante é que, segundo a Polícia Federal brasileira, esse contrabando conta com fiscais e colaboradores posicionados em locais estratégicos nos aeroportos para facilitarem esse processo. A Renctas também mapeou os aeroportos mais utilizados no Brasil naquela época.
Um documento bem mais recente, de 2021, produzido pela organização C4ADS (Taking Off: Wildlife Trafficking in The Latin America and Caribbean Region), aponta que, entre todos os países da região, o México, o Brasil e a Colômbia tiveram o maior número de casos de tráfico em aeroportos entre 2010 e 2020. Sendo que 38% das apreensões ocorreram em aeroportos da Cidade do México, São Paulo, Belém, Manaus e Tijuana. Entre os métodos de contrabando mais utilizados estão o uso das bagagens despachadas e o carregamento junto ao próprio corpo/roupas do passageiro.
Apesar de o Brasil ser uma origem (e consumidor) importante do contrabando (Figura 2), da nossa enorme biodiversidade e de ser uma nação expressiva da aviação mundial, parece que ainda não estamos muito engajados nas discussões da responsabilidade dos administradores aeroportuários (sejam públicos ou privados) e das companhias aéreas. Claro que iniciativas e ações acontecem, como a da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que inseriu, em 2021, no programa Aeroportos Sustentáveis, um questionamento sobre o tráfico. E, em março deste ano (2022), ocorreu um encontro entre Ibama e companhias aéreas para falar sobre o tema. Porém, a baixa adesão formal às iniciativas internacionais supramencionadas e o gráfico a seguir (Figura 3), de um dos últimos reportes (From Take Off to Touch Down) da iniciativa USAID Reducing Opportunities for Unlawful Transport of Endangered Species (ROUTES), de 2021, mostram o nosso país ainda com uma pequena fatia de envolvimento.
Com isso, o meu artigo começou intencionalmente com um título provocativo para clamar ao setor aéreo brasileiro uma maior atuação e divulgação de suas iniciativas. Estamos passando por um momento muito perigoso da história da humanidade, no qual já ultrapassamos o limite planetário de integridade da biosfera (entre outros) (Figura 4) e estudos indicam que estamos provocando a sexta extinção em massa. Sendo, tanto a caça quanto o comércio ilegal da biodiversidade relevantes ameaças. Portanto, todas as ações para coibir esses crimes devem ser feitas com o envolvimento crescente de toda a sociedade e dos negócios.
Por fim, aproveito também para “questionar” outros modais de transporte e meus colegas redatores desta coluna: “Ei! Rodovias, Ferrovias e Aquaviário, o que vocês podem fazer ou já estão fazendo a respeito desse assunto?” Como exposto num documento recente da Freeland-Brasil e WWF Brasil, o desenvolvimento dos transportes é, sem dúvidas, importante para a economia e integração mundial, mas tem o efeito colateral de facilitar as operações ilícitas e potencializar o acesso aos mercados ilegais. E, já que os criminosos mudam procedimentos e rotas constantemente, será que os modais de transporte brasileiros não poderiam trabalhar mais em conjunto para coibir essas práticas?
Dica: Acesse os materiais sobre o tema em organizações e iniciativas, como: Renctas, C4ADS, IUCN, USAID ROUTES, WWF, TRAFFIC, ACI e IATA. Essas instituições/grupos disponibilizam em seus websites uma variedade de fontes e publicações relevantes e direcionadas à aviação. Para mais informações, também sugiro a leitura de um documento da TRAFFIC, de 2020: Wildlife Trafficking in Brazil.
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