Por Carlos Eduardo Tavares da Costa
Biólogo, bacharel em Direito e agente de Polícia Federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Em 1903, foi assinado o Tratado de Petrópolis que estabeleceu o fim da disputa entre brasileiros e bolivianos pelo território do Acre. A negociação de paz foi muito bem conduzida pelo Barão do Rio Branco, Ministro de Relações Exteriores na ocasião, resultando na concessão, por parte da Bolívia, da região acreana. Um detalhe que poucos citam foi que afluentes do rio Amazonas, que tornavam navegável nosso maior rio, desde o território boliviano, passou a pertencer ao Brasil, aliviando a pressão da comunidade internacional do século 19 para que o rio Amazonas fosse considerado internacional pelo fato de um braço estar em território boliviano.
Por que essa mudança foi importante?
Conceito anterior a tratados internacionais, cursos d’água perenes que correm em mais de uma nação seriam considerados “rios internacionais”, onde a navegação por embarcações de diferentes bandeiras deveria ser exercida livremente. Lembrando que o rio Amazonas é o principal curso d’água da maior bacia hidrográfica do planeta, contando com mais de sete mil afluentes. Citei esse episódio para demonstrar que os brasileiros já tinham uma grande preocupação com a soberania da Amazônia desde aquela época.
Sem dúvida, a região chama a atenção. A Amazônia brasileira está inserida na maior área de florestas contínuas existentes no mundo, o chamado sistema Pan-Amazônico. Mais oito países são responsáveis pela gestão dessa área, considerada a mais rica em biodiversidade: Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Suriname, Guiana e o território ultramarino da Guiana Francesa. O Pacto Amazônico, ou Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), produziu efeitos jurídicos de reciprocidade, principalmente no aspecto de preservação, mas não se discute a soberania territorial.
Biologicamente falando, a Amazônia, definida como bioma, pertence à ecosfera. Acontece que em nosso rico planeta existem outros biomas: tundra, taiga, floresta temperada, floresta tropical, savanas, pradaria e desertos. Regras e políticas internacionais garantem a soberania de territórios constituídos aos Estados. Se não fosse por esse motivo, poderíamos reclamar nossos direitos sobre o meio ambiente diante de nações europeias, cujas florestas primárias são geralmente raras e estão localizadas em áreas remotas e fragmentadas.
A floresta de Bialowieza, que atravessa a fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia, representa a última floresta primária de planície remanescente na Europa, cobrindo pouco mais de 1.500 quilômetros quadrados. Qualquer turista observador que visite o velho continente encontra extensões preocupantes de eucaliptos plantados, substitutos patéticos de florestas milenares, hoje inexistentes. Com exceção da Suécia (69%), o restante dos países europeus mantém uma média de 30% de sua cobertura florestal, o que não significa preservar florestas primárias, e sim, replantios, principalmente com espécies exóticas e, principalmente, de interesse econômico. Países como Reino Unido (12%), França (29%) e Holanda (11%), são exceções e apresentam dados abaixo daquela média.
Como potência agrícola mundial, os Estados Unidos mantêm, apenas, 23% de cobertura florestal (nem toda primária) e boa parte como replantio com objetivos econômicos, principalmente para construção civil.
A China, potência econômica emergente, apresenta, apenas, 17% de sua cobertura florestal, boa parte em áreas remotas e frias. Para uma país com suas dimensões, isso é muito pouco e denota políticas erradas para o meio ambiente.
Comparando com o Brasil, que mantém 63% de cobertura florestal (boa parte primária) e apenas 9% de seu território voltados à agricultura, damos um “banho” em termos de preservação conjugada com produção. Lembrando que produzimos, nesse pequeno percentual, cinco vezes o que necessitamos para alimentar nossa população.
Há oito mil anos, o Brasil possuía 9,8% das florestas mundiais. Hoje, o país detém 28,3%. Tais dados comprovam que nações que hoje nos criticam não estão fazendo o dever de casa. Se o desflorestamento mundial prosseguir no ritmo atual, o Brasil – por ser um dos que menos desmatou – deverá deter, em breve, quase metade das florestas primárias do planeta. O paradoxo é que, ao invés de ser reconhecido pelo seu histórico de manutenção da cobertura florestal, o país é severamente criticado, justamente pelos campeões do desmatamento.
O jornal O Estado de S. Paulo publicou artigo intitulado “A nossa Amazônia” (agosto 2019), em que alertou sobre “uma campanha internacional movida contra o Brasil” com “pretensão de relativizar a soberania brasileira sobre a região. Tais tentativas já foram feitas em vários momentos. Em 1972, após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, construiram-se teorias, nada científicas, que embasariam o Direito Internacional do Meio Ambiente, sendo uma delas a de que a Amazônia seria o “pulmão do mundo”, responsável pela retirada do excesso de CO² atmosférico. A vã tentativa de tornar esse bioma em um patrimônio comum da humanidade e posteriormente pôr em pauta a soberania dos países caiu por terra quando foi provado que o O² produzido pela floresta era, em seguida, consumido por ela mesma. A Rio 92 firmou a soberania dos países perante seus recursos naturais. Deixou claro, em documento firmado pelas nações, que soberania nacional não se mistura com patrimônios comuns.
Ministro francês, Franck Riester, se referindo ao Tratado Comercial Mercosul/Comunidade Econômica Europeia (CEE), disse: “A Amazônia não pertence apenas ao Brasil.” Como ele se referia a um acordo comercial entre países, acreditamos não se tratar de narrativa puramente biológica. Joe Biden, durante campanha, disse que “faria o Brasil assinar acordos ambientais nem que tivesse que tomar medidas enérgicas”. Apesar de soar como retórica política e eleitoreira, sempre me chamou atenção o fato de excluírem as florestas tropicais contíguas pertencentes aos nossos países vizinhos, principalmente à Guiana Francesa, no caso de Riester. Aliás, em um curso realizado há alguns anos no Centro de Integração e Aperfeiçoamento em Polícia Ambiental (Ciapa) da PF na Amazônia, onde tratávamos do tema tráfico internacional de animais silvestres, me surpreendeu a notícia dada pelo principal órgão ambiental francês de que animais traficados ilegalmente, e interceptados em território francês, eram incinerados. Esses seres vivos não pertenceriam à biota mundial? Não deveriam ser repatriados e reintroduzidos em seus biomas de origem?
Temos uma questão político-econômica importante a ser considerada: quando uma floresta se torna mais escassa, o valor dos produtos florestais aumenta (podemos encaixar o mercado ilegal de fauna silvestre nessa questão, também). Há a necessidade de busca de “novos” recursos em locais bem mais preservados. Nações que já sofreram com perdas irrecuperáveis dos recursos naturais veem no Brasil uma reserva biológica e econômica inestimável.
Desde o século 16, as Ordenações Manuelinas e Filipinas estabeleceram regras e limites para exploração de terras. Proteção das águas e de determinadas espécies vegetais e, consequentemente recursos faunísticos e minerais, já faziam parte de nossas políticas. A coroa portuguesa e, posteriormente, a brasileira já logravam manter a cobertura vegetal preservada até o final do século 19, ao contrário da maioria dos países em que políticas de defesa da natureza são fenômenos recentes. Temos, sim, interesses estratégicos, econômicos e geopolíticos. A biotecnologia se desenvolve em função dos recursos biológicos. Medicamentos que salvam não surgem do nada e nos custam caro nos momentos difíceis. Conhecimentos tradicionais indígenas vêm sendo procurados por grandes grupos, o que nos forçou a discutir normas para o combate à biopirataria. A Amazônia pertence a quem delimitou, defende e tradicionalmente ocupa. Uso com responsabilidade, delimitação e defesa são os verdadeiros critérios para se estabelecer a propriedade, pelo menos enquanto soberania for interesse das nações.
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