Por que você deveria considerar observar aves com os ouvidos?

Há quase 25 anos, um rapaz magrelinho, sério, inteligente e seguro de si conduziu eu e um grupo de estudantes de medicina veterinária para observar aves no campus da Universidade de São Paulo (USP) que fica em Pirassununga (SP). Eis que este rapaz chamado Carlos Otávio Araújo Gussoni foi o biólogo e ornitólogo que, naquele dia, fez algo tão surpreendente que posso afirmar que só estou escrevendo este artigo hoje porque aquela experiência de observação de aves me marcou de forma irreparável. Naquele dia, eu achei muito incrível o dom daquele moço que ouvia o canto dos pássaros e, como bruxaria, sabia qual era a espécie que emitia cada som que ouvíamos.

Atualmente, essa habilidade ainda é muito desejada pelas pessoas que amam pássaros livres a ponto de terem sido desenvolvidas ferramentas específicas para identificar as aves pelo som que emitem. As ferramentas são aplicativos gratuitos que, instalados em celulares, são capazes de dar sugestões de identificação de aves com base em simples gravações sonoras feitas por cidadãos comuns. Exemplos desses aplicativos são o Merlin Bird ID e o BirdNet, ambos desenvolvidos pelo Laboratório de Ornitologia da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. Eles podem ser baixados agora mesmo, gratuitamente, para você testar.

Esse foi o início da minha história com a observação de aves, que é muito diferente do que acontece com a maioria das pessoas, que começa a observar aves com maior foco nas imagens e não nos sons. Este artigo tem o objetivo de familiarizar e envolver você nesse segmento da observação de aves que apresenta um potencial enorme, mas ainda pouco explorado.

Observar aves com os ouvidos é a forma mais simples e acessível de se conectar com a natureza de uma forma quase meditativa. Apesar de exigir plena atenção e foco, não é preciso equipamentos de alto custo, pois somente o seu celular já é suficiente para desfrutar dos recursos e das funcionalidades mais importantes e acessíveis que temos à disposição.

Registrar os sons dos animais sempre foi um desejo: transcrição ou imitação fonética

O som é um fenômeno natural que não temos como controlar ou prever com precisão. Por este motivo, um grande anseio do homem foi o de gravar os sons emitidos por animais para poder reproduzi-los. Mas, como antigamente as gravações não existiam ou eram raras e caras, a imitação fonética serviu de base para as onomatopeias e, em seguida, para nomes e palavras. A transcrição fonética de cantos e gritos de aves ainda consta de vários guias de campo, tanto para ornitólogos quanto para o público geral.

Você já reparou que alguns guias de campo tem essa imitação dos cantos e chamados? No livro Aves do Brasil – Mata Atlântica do Sudeste, que uma das autoras é a Martha Argel, há essa imitação fonética para quase todas as espécies da publicação –  forma muito útil de memorizar os cantos e chamados.

Onomatopeias: nomes de aves baseados nos sons que emitem

O universo sonoro sempre representou uma fonte vital de informações tanto para o caçador quanto para o homem pré-histórico, tribos indígenas e, agora, para os observadores de aves modernos. Na história da humanidade, a importância dos sons naturais se revela na incorporação de onomatopeias na linguagem, com múltiplos exemplos nas aves como bem-te-vi (Pitangus sulphuratus), quero-quero (Vanellus chilensis), caracará (Caracara plancus), quiri-quiri (Falco sparverius), bacurau (Nyctidromus albicollis), arara (Ara ararauna), saci (Tapera naevia), udu (Momotus momota), coró-coró (Mesembrinibis cayennensis), petrim (Synallaxis frontalis), joão-teneném (Synallaxis spixi), pitiguari (Cyclarhis gujanensis), fogo-apagou (Columbina squammata), pichochó (Sporophila frontalis), curicaca (Theristicus caudatus), acauã (Herpetotheres cachinnans), tiziu (Volatinia jacarina), tico-tico (Zonotrichia capensis), entre outros.

O grande e doce desafio: relacionar cada som do repertório vocal com comportamentos específicos

O repertório vocal é todo o conjunto de sons emitidos pelas aves. Cada som é emitido em um contexto comportamental, sem o qual não é possível reconhecer com segurança a função biológica das diversas vocalizações. Por esse motivo, é recomendado que o observador procure ver a ave para registrar o comportamento porque sons até então desconhecidos podem aparecer em situações comportamentais raras e novas para qualquer ave – mesmo aquelas muito comuns na sua rotina. Pode ocorrer também que sons muito semelhantes aos nossos ouvidos representem funções biológicas diferentes.

O repertório vocal vai revelar quais são as estratégias de vida das espécies estudadas. Por exemplo: a organização social molda o repertório vocal do anu-branco (Guira guira), que tem três tipos de sons relacionados ao voo: um para o bando se preparar, outro para dar o sinal de partida e o terceiro para manter o bando unido durante o voo. A explicação está nos fatos de a espécie ser altamente sociável e viver em bandos e que seu voo desajeitado é um momento de risco, quando fica exposta ao ataque de predadores como os gaviões. Assim, espécies territoriais e espécies coloniais terão necessidades de comunicação muito diferentes e repertórios distintos.

A polêmica técnica do playback para atração de aves: a ilusão da presença

O playback, técnica que consiste em emitir um som previamente gravado, é uma manobra que pode auxiliar muito na identificação e atração das aves. Mas também apresenta um enorme potencial de perturbação da paz e segurança delas, principalmente quando usada de forma errada ou exagerada. Existem várias modalidades de uso dessa técnica, sendo a mais rotineira a de tocar a gravação que acabou de ser feita para testar o poder de resposta a esse som. Esse teste também pode ser feito recorrendo a gravações anteriores de outros indivíduos ou de outras populações ou espécies.

Note que o som é o único sinal de comunicação que permite criar essa ilusão de encontro. Na prática, o playback funciona melhor quando o sinal sonoro testado é o canto, pois, normalmente, ele provocará uma reação de defesa territorial. Mas gritos podem também provocar alguma reação de procura da fonte em caso de sinal de contato ou, ao contrário, de fuga em caso de sinal de alarme.

Vale ressaltar que a resposta ao playback está muito longe de ser automática e depende do momento do ciclo biológico, como estar ou não no período reprodutivo, e das condições naturais do cantor testado, que não vai reagir sempre de maneira agressiva (ele pode, simplesmente, parar de cantar). Estas reações devem ser encaradas com respeito e entendimento que não adianta forçar situações, pois o abuso da técnica de playback causa enorme distúrbio para a ave e frustração para o observador, que chega ao ponto de esquecer a caixinha de som, tamanho é o desapontamento na resposta das aves à insistência que não resulta em visualização do animal com clareza ou em oportunidade para a foto perfeita.

Cuidados ao registrar os sons das aves: não basta conseguir uma gravação de boa qualidade técnica

As gravações só terão valor científico se forem bem documentadas. Recomenda-se registrar imediatamente um mínimo de informações, como data e local da gravação, observações do ou dos animais gravados, descrição do seu comportamento e a indicação sobre se e quando foi gravado o som houve execução de algum playback.

Gostou de conhecer um pouco mais sobre o universo sonoro das aves? Espero ter convencido você de investir um pouco mais de tempo e energia nas vozes das aves para que a sua experiência com a observação de aves seja cada dia mais completa e envolvente!

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