Por Kamila Bandeira
Bióloga com mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutoranda no mesmo programa, além de pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas estão focadas em Paleontologia de vertebrados
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Olá! Este mês, a coluna Túnel do Tempo terá um texto especial escrito pelo pesquisador Arthur Souza Brum, que liderou o estudo sobre uma nova espécie de dinossauro, o Ypupiara lopai. O artigo científico com os detalhes do trabalho foi publicado em 28 de junho. Espero que você goste. E não esqueça de compartilhar em suas redes sociais!
Por Arthur Souza Brum
Doutorando em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do projeto Paleoantar e paleontólogo com foco no estudo de dinossauros e paleobiologia
Os dromeossaurídeos são dinossauros terópodes (o Fauna News já abordou um pouco sobre eles em janeiro e junho) popularmente associados a predadores vorazes, rápidos e extremamente inteligentes. Um exemplo muito famoso é a espécie Velociraptor, estrela de filmes como Jurassic Park e Jurassic World. Esse grupo de dinossauros carnívoros, em particular, é mais proximamente relacionado às aves atuais do que a outros terópodes, como o Tyrannosaurus.
Esse grupo de dinossauros foi muito diverso entre 163 e 66 milhões de anos atrás, se distribuindo por praticamente todos os continentes. Aqui na América do Sul, especialmente na Argentina, os dromeossaurídeos são representados pela linhagem denominada Unenlagiinae. No Brasil, embora já tenham sido reportados dentes e uma vértebra dorsal tentativamente associados aos unenlagíneos não foi possível identificações mais acuradas ou identificar novas espécies devido à incompletude do fóssil. Portanto, Ypupiara lopai se trata da primeira espécie de raptor para o Brasil.
A (re)descoberta, perda e… Uma nova espécie!
Dentre as décadas de 1940 e 1960, o paleontólogo Llewelly Ivor Price e Alberto Lopa, seu técnico coletor na época, passaram a realizar trabalhos de campo sistemáticos em Peirópolis, no município de Uberaba, Minas Gerais. Embora o fóssil tivesse sido coletado nessa época, devido ao seu caráter fragmentário, ele foi identificado apenas como parte de um vertebrado e permaneceu sob a curadoria Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro. Foi somente em 2017-2018 que esse fóssil foi redescoberto e analisado mais profundamente. O material estava emprestado para estudos ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que foi acometido pelo trágico incêndio em 2 de setembro de 2018.
A decisão de se nomear uma espécie nova não foi trivial. Apesar de o fóssil compreender apenas dois fragmentos, uma maxila (com três dentes) e um dentário, foi a partir de comparações anatômicas detalhadas, especialmente de seus dentes, que conseguimos inferir que se tratava de um dromeossaurídeo unenlagíneo. Uma vez que delimitamos o grupo, começamos a comparar com outros unenlagíneos que também tinham partes do crânio preservadas (Austroraptor e Buitreraptor) e vimos que as características do Ypupiara eram únicas quando combinadas. Decidimos, portando, nomear uma nova espécie.
Com a perda do holótipo (espécime único ou fragmento de espécime usado pelo pesquisador para a descrição original de uma espécie) no incêndio de 2018, nos encontramos em um impasse, pois o holótipo atua como um documento da espécie nomeada. Existia, portanto, a possibilidade desse novo dinossauro permanecer sem nome. Entretanto, graças as regras existentes no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica (ou ICZN, em inglês), que dita as regras para definições de espécies novas para animais, descobrimos que não havia impedimento para a nomeação do Ypupiara.
Especificamente, o Ypupiara cumpria todos os principais requisitos: o material estava propriamente tombado em uma instituição científica e o tínhamos amplamente documentado, com diversas fotos em vistas distintas, descrições e medições detalhadas. Essas informações salvaguardaram as principais novidades evolutivas do Ypupiara e serão úteis para comparações futuras, validando assim a espécie – assim como já aconteceram com outras espécies que também se perderam no tempo por outros motivos, como o famoso Spinosaurus, cujo material original foi perdido durante o bombardeamento na Segunda Guerra Mundial. Sendo assim, levamos à frente o trabalho e a designação de uma espécie nova.
A espécie
O nome Ypupiara foi originalmente sugerido pela paleontóloga Kamila Bandeira, devido aos seus dentes, que têm características semelhantes às observadas em animais piscívoros (que se alimentam de peixes). Do tupi, ypupiara significa “aquele que vive nas águas” e é uma referência a uma criatura lendária sereiana na mitologia tupi. Já o epíteto específico lopai foi uma singela homenagem a Alberto Lopa, pois, em uma prancha inacabada de Price com um registro de unenlagíneo, pudemos identificar uma anotação que fazia uma reverência a Lopa. Por isso, e por Alberto Lopa ter participado das expedições na época dessa descoberta, decidimos prestar essa singela homenagem.
A descrição do Ypupiara nos ajuda a entender um pouco mais da evolução dos unenlagíneos. Analisando as hipóteses de relacionamento do Ypupiara com os outros dromeossaurídeos, ele se agrupava como uma linhagem irmã de Austroraptor. Além disso, recuperamos os unenlagíneos como um grupo irmão de uma linhagem semi-aquática de dromeossaurídeos da Ásia: os Halszkaraptorinae.
Embora seja difícil de fazer estimativas de tamanho corporal acuradas para o Ypupiara devido à natureza do material, comparando com o grande Austroraptor – 5-6 metros da ponta do focinho à ponta da cauda – e o diminuto Buitreraptor – 1,5-2 metros –, conseguimos inferir, por alto, que Ypupiara teria de 2,5 a 3 metros, o que é um padrão de médio a grande porte para um raptor.
As análises detalhadas dos dentes revelaram que, embora Ypupiara tivesse características compartilhadas com Buitreraptor, as proporções diferiam drasticamente entre eles. Notamos também que a dentição era muito parecida com organismos que têm peixes como parte integrante de sua dieta. Concluímos que, provavelmente, Ypupiara era um predador de médio porte que se alimentava de pequenos animais, como lagartos, anfíbios e peixes, sendo um tipo de forrageio semelhante ao encontrado em aves ribeirinhas, como as garças, o que difere do hábito mais cursorial de Buitreraptor. Isso também é condizente com o paleoambiente dessa época, com Buitreraptor habitando regiões mais áridas na Argentina, enquanto a região de Peirópolis, entre 72-66 milhões de anos, era um ambiente mais úmido, rico em rios aluviais. Essas duas espécies também eram separadas por 22 milhões de anos e um extenso deserto – o Cauiá – isolava a região de São Paulo e Minas Gerais da Argentina na época do Buitreraptor (entre 110 e 90 milhões de anos). Somente há 83 milhões de anos houve um aumento de umidade e regressão do Cauiá, permitindo a dispersão desses dromeossaurídeos, o que é corroborado pela relação de linhagens irmãs entre Ypupiara e Austroraptor.
Esse estudo traz importantes novas informações para se entender um pouco da diversidade de dinossauros do Brasil e da evolução dos dromeossaurídeos, além de dar vislumbres sobre o passado da América do Sul. O trabalho científico foi realizado por pesquisadores do Museu Nacional da UFRJ, da Universidade Federal do ABC, do Museu da Amazônia e do Museu de Ciências da Terra-CPRM.
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