Por Karlla Barbosa
Bióloga, observadora de aves, mestra em Conservação Ambiental e Sustentabilidade e doutora em Zoologia
observaçãodeaves@faunanews.com.br
Eu já estou encontrando comentários de que, em algumas regiões do Brasil, os sabiás começaram a cantar. Em setembro, tem início a primavera, mas essas aves já estão se antecipando e treinando para a sinfonia. Em cidades como São Paulo, teremos, como todo ano, vários comentários bem diversificados, desde daqueles que ficam felizes em notar novamente a presença do sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris) até os que se incomodam com sua cantoria na janela às 3 horas da madrugada.
Mas você sabia que o sabiá, protagonista de tantas polêmicas, é a ave-símbolo do Brasil?
Sim, temos uma ave que é considerada a espécie-símbolo brasileira, assim intitulada por um decreto presidencial após uma discussão longa e cheia de reviravoltas. Em 1968, o governo federal instituiu o dia 5 de outubro como Dia da Ave (Decreto nº 63.234), mas sem fazer menção a uma ave-símbolo. Então, em 3 de outubro de 2002, um decreto assinado pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso instituiu em seu artigo 2º: “O centro de interesse para as festividades do “Dia da Ave” será o Sabiá (Turdus Rufiventris [sic]), como símbolo representativo da fauna ornitológica brasileira e considerada popularmente Ave Nacional do Brasil”.
No Brasil, temos 1.971 espécies de aves de acordo com a nova lista brasileira (CBRO de 2021). Então, por que o sabiá-laranjeira?
A escolha da espécie-símbolo foi disputada e teve concorrentes fortes como a ararajuba (Guaruba guarouba), que tinha fortes credenciais ao ´cargo´, como ser endêmica do país e exibir suntuosamente as cores da nossa bandeira. Mas, no final, o sabiá-laranjeira acabou escolhido. Diversas foram as justificativas, inclusive uma carta enviada por Jorge Amado ao amante das aves Dalgas Frisch apoiando a proposta do sabiá como ave-símbolo, mas, principalmente, a sua presença na cultura e na arte brasileiras, como a canção Sabiá, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, e o clássico Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, e até mesmo o fato de ser uma espécie de ampla distribuição no país.
De fato, o sabiá-laranjeira não ocorre em todo Brasil (é essencialmente ausente na Amazônia), mas é popularmente bastante conhecido em diversas regiões do Brasil, onde pode ocorrer tanto em áreas rurais como urbanas. Ele também não é exclusivo do Brasil, pois está presente também na Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina.
A propósito, os nossos hermanos argentinos também tem uma ave-símbolo bem conhecida por aqui e que, a exemplo da nossa. é uma ave relativamente comum e amplamente distribuída: o joão-de-barro (Hornero – Ave de la Patria). Podemos inclusive considerar as mesmas justificativas dadas para a escolha do joão-de-barro pelos argentinos para o sabiá-laranjeira: é uma ave que não é exclusiva de uma pequena região do país, é comum, encontrada em diferentes ambientes e convive próximo das pessoas. Essa última, inclusive, vai ao encontro do que diz o decreto: “As comemorações do “Dia da Ave” terão cunho eminentemente educativo e serão realizadas com a participação das escolas e da comunidade.” Isso reforça a importância de uma espécie-símbolo para a educação e o conhecimento sobre a biodiversidade de um país.
Vamos aproveitar que estamos falando a nossa ave-símbolo e contar um pouco mais sobre os sabiás.
Quando falamos do nome popular “sabiá”, geralmente estamos nos referindo a várias espécies. Nomes populares, frequentemente, não incluem somente as aves que são aparentadas e com os mesmos “sobrenomes”. No caso do sabiá, muitas espécies não são nem da mesma família! Temos o sabiá-do-banhado (Embernagra platensis) e o sabiá-do-campo (Mimus saturninus), algumas até bem diferentes como o sabiá-pimenta (Carpornis melanocephala) e até um parente das maritacas, o sabiá-cica (Triclaria malachitacea). Temos ainda variações do nome, como os sabiazinhos que são espécies do gênero Catharus, um parente próximo dos sabiás “verdadeiros”. Mas isso denota a diversidade da nossa cultura e o rico conhecimento popular.
O nosso símbolo sabiá-laranjeira faz parte da família Turdidae e todos seus parentes mais próximos são do gênero Turdus (é como se todos tivessem esse sobrenome). Em todo o planeta são pelo menos 65 espécies pertencentes a esse gênero. No Novo Mundo (que inclui as Américas), temos espécies desde a Patagônia até o Alasca, habitando os mais diversos ambientes e, muitas vezes, se alimentando e até fazendo seus ninhos nos quintais das pessoas. Só no Brasil, temos 17 espécies do gênero Turdus (CBRO de 2021), a maioria com “sabiá” no nome, mas algumas ainda denominadas de caraxué (e seus complementos para o nome), sendo esses de ocorrência na Amazônia. Algumas são ainda muito pouco conhecidas e uma foi descrita para a Ciência somente na última década: o sabia-da-várzea (Turdus sanchezorum).
Assim, os sabiás representam espécies com histórias de vida bastante diversas, cujo conhecimento contribuem muito à Ciência ornitológica, uma vez que:
– são ótimos exemplos para estudarmos sobre as interações das aves com os seres humanos;
– são bons plantadores de florestas, pois se alimentam de frutos e dispersam as sementes;
– são espécies-chave para pesquisa de longo prazo; e
– são ótimas ferramentas para estudos de ciência cidadã, uma vez que estão em todo tipo de ambiente e próximos das pessoas.
Além disso, os sabiás contribuem muito ao nosso entendimento sobre migração, pois exibem uma variedade de estratégias migratórias, desde a migração obrigatória até a parcial ou nenhuma migração.
Quando você escutar um sabiá cantando na sua janela, lembre-se que aquele singelo cantor é uma ilustre personalidade, uma espécie-símbolo; que tem uma importância ecológica nos ecossistemas, sejam naturais ou urbanos; e que, não menos importante, traz encanto e alegria aos nossos dias (às vezes às nossas madrugadas), aumentando a nossa conexão com a natureza.
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