Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Desde o nosso último artigo aqui no Aquáticos, optamos por recordar aquilo que se significa através das coletividades. Daquilo que – através do afeto e do reconhecimento – é capaz de sensibilizar e transformar nossa forma de perceber e de atuar no mundo.
E não por acaso, desta vez, escolho contar uma das mais bonitas histórias dos mares de cá, do sul do Brasil. Daquelas histórias de dizer “que não existe em outro lugar do mundo”. Que, mesmo entre os dois estuários onde ela, a pesca cooperativa, ainda ocorre, existem algumas diferenças. Pois são, de fato, diferentes os sujeitos – os pescadores artesanais de tarrafa e os botos – que residem, pescam e coexistem em cada estuário.
Os estuários, entre si, já são diferentes. Lá em Laguna (SC), por exemplo, o estuário é maior, tem mais pescadores artesanais e aproximadamente 60 botos residentes. Já, o lá na Barra, como popularmente se chama o canal de ligação do estuário do rio Tramandaí (RS), é menor. Tem menos pescadores e apenas dez botos residentes. Dentre eles, cinco já habitam a barra há mais de duas décadas. Mas o objetivo da cooperação entre botos e pescadores artesanais, nos dois estuários, é o mesmo: capturar tainhas.
Nós aprendemos muito – senão tudo – com os pescadores artesanais da Barra. Eles vivem ali desde que a Barra era “só pescador e areia”. E contam, ainda, sobre a pesca do boto, que “isso é coisa antiga”. Que o avô já pescava com os botos, que aprendeu com o pai, ou com outros pescadores artesanais mais antigos ali na Barra.
E é ali mesmo, na margem da Barra, pertinho do mar ou mais para dentro do canal, que eles se posicionam. Assim, todos de pé, um do lado do outro. A água salobra, dos calcanhares até a metade das pernas. As tarrafas nos ombros, as bicicletas na areia. E esperam. Atentos ao boto. Ou a bota. Que nem a Geraldona, que antes era Geraldão, mas quando apareceu com filhote, souberam que era fêmea. Aí não teve jeito, teve que mudar de nome.
Alguns dizem que a Geraldona é a melhor bota pra “pescar junto”, “sempre a Geraldona”. Mas tem quem ache que é a Manchada, “a Manchada que é mãe da Geraldona”, “uma bota grande também”. Ou quem prefira “pescar com os quatro botos que estão sempre ali, a Rubinha, o Chiquinho, o Coquinho e o Bagrinho”. E tem, ainda, quem tenha feito uma tarrafa especial, só “pra pegar com o Lobisomem”, que era um boto rápido e roubava, várias vezes, as tainhas de dentro da rede. “A natureza é fantástica, né?”.
Os nomes dos botos? São os pescadores que dão. Pelo “jeitão”. O jeito de cada boto pescar ou características outras, físicas ou comportamentais, que eles possam ter. Já, para pesquisadores e pesquisadoras, é mais fácil reconhecê-los pela nadadeira dorsal, que é aquela que está no dorso do corpo. Essa nadadeira é única em cada boto. É como identificar as nossas impressões digitais, que são únicas para cada um de nós.
Os pescadores artesanais reconhecem os botos que são residentes na Barra, ou seja, aqueles botos que descansam, que criam seus filhotes e que se alimentam frequentemente nesse estuário. E, graças aos pescadores, nós também conhecemos a linhagem genealógica dos botos, quem é filho de quem. Pelo menos no que diz respeito às fêmeas, que cuidam dos filhotes desde o nascimento até mais ou menos os cinco anos de idade, e os ensinam táticas variadas, além de praticamente tudo que precisam saber. Inclusive sobre como pescar junto com os pescadores artesanais.
Uma vez perguntamos, também, se os botos os reconheciam. “Eu acho que os botos conhecem, conhecem todos nós. Conhecem mais aqueles que estão todo o dia ali. Tem uns pescadores que são muito conhecidos por eles”, nos disseram.
É um conhecimento empírico, que se mantém coletivamente nas memórias e nas práticas diárias, de geração em geração, e se reproduz no cotidiano de cada sujeito ali inserido. Uma transmissão cultural. Entre os botos, entre os pescadores, entre pescadores e botos. E esse saber e saber-fazer da pesca artesanal de tarrafa e da pesca cooperativa, fazem parte do conhecimento tradicional dos pescadores artesanais.
Eles aprenderam a pescar principalmente com seus avôs, pais e pescadores mais antigos. E ensinam para seus filhos/as. E algumas de suas companheiras também são pescadoras. Mesmo quando isso significa trabalhar nas redes e no processamento do pescado, “o que ela faz é pesca […]. Limpar o peixe, arrumar as redes, fazer as redes, organizar a pesca” é tão pesca quanto quando eles estão efetivamente pescando.
Os pescadores artesanais são comunidades tradicionais e têm, inclusive, seus direitos reconhecidos por lei. Eles fazem, junto de tantos outros povos e comunidades tradicionais, parte da sociobiodiversidade do nosso país, que é, sem dúvida, a maior riqueza que se pode ter. Mesmo que esteja, assim, tão ameaçada pelos interesses de poucos homens com tantos poderes.
Mas ainda não falamos sobre como a pesca cooperativa acontece. Ficam, os pescadores, na areia ou com os pés na água salobra da barra, e as tarrafas nos ombros. As redes de pesca são, por vezes, lançadas, capturando algumas de tainhas. Mas, quando os botos entram na barra, a atenção é para eles.
Quando os botos detectam os cardumes de tainhas, eles os perseguem, encurralando os peixes em direção às margens, onde estão os pescadores. Os pescadores, por sua vez, posicionam-se mais próximos aos botos. Os botos, com sinais característicos feitos com a cabeça ou com a nadadeira caudal, indicam aos pescadores o momento apropriado para lançar as tarrafas.
Uma vez que a tarrafa é lançada sobre o cardume, os pescadores capturam um maior número de peixes. Já para os botos, se torna mais fácil perseguir e capturar àquelas tainhas que se desorientam do cardume quando a rede de pesca cai sobre a água.
Os pescadores chamam a pesca cooperativa, também, de “correr o boto”. Porque correndo na margem, eles acompanham os movimentos do boto na água: “dá para pescar sem eles [os botos], vem peixe”, mas bom mesmo “é a correria com o boto, da sensação e da adrenalina que dá, e também porque rende muito mais peixe.”. E eles asseguram: com a ajuda dos botos, a eficiência da pesca é maior!
E lembra que eu disse, lá no começo, que a pesca cooperativa não existe em outro lugar do mundo? Não é que não haja, em outros lugares, outras relações de pesca entre botos selvagens e pescadores artesanais. Existem na Mauritânia, na Índia e em Myanmar. São outras espécies de golfinhos, outros pescadores e outras técnicas de pesca.
Mas aqui, o que faz da pesca cooperativa única, é essa coexistência sensível dos pescadores artesanais, que reconhecem os botos e dão nomes a eles. E que se estabelece em uma relação contínua, que também é muito antiga. Que é ritualizada e depende do aprendizado mútuo, tanto dos botos quanto dos pescadores. Além disso, os movimentos da pesca são sempre iniciados pelos botos, que nunca foram treinados pelos pescadores. Parece mesmo que foram as décadas de convivência entre eles, assim como o benefício da parceria para todos, o que levou à essa interação. E ainda tem o afeto, mas esse, esse aí não dá pra quantificar…
Os pescadores sempre dizem “todo mundo deveria saber o que acontece aqui, sobre os botos e da pesca com eles. saber como eles ajudam o pescador...”, “o boto é tudo para nós aqui na Barra. já salvou muito a comida na panela.”. “é assim, se a gente não cuidar, tudo vai terminando”. Tinha muito mais peixe antes, tudo anda terminando: “por sorte, quando tem botinho, ajuda“. Que “se nós não temos os botos aqui, nós não teríamos mais a pesca na Barra. Uma coisa é certa, isso eu tenho certeza.”
E toda essa importância, eu só entendi mesmo quando ouvi os pescadores falando. Então convido você, se ainda está aí lendo, para ouvi-los também. E assistir um documentário pra lá de bonito, que se chama “Pesca do boto” (2020), e que em outubro deste ano teve sua mostra online da 32ª Reunião Brasileira de Antropologia. Aí já conhece um pouco mais os pescadores artesanais de tarrafa “amigos do boto”, os botos e, também, a Barra do rio Tramandaí.
Ao longo da convivência com eles, aprendemos que a recíproca também é verdadeira: se não houvesse os pescadores, provavelmente também não estariam os botos lá. É graças à prática de pesca artesanal que já existem instrumentos legais que ajudam a proteger a Barra e regulamentar atividades antrópicas que prejudicam a pesca artesanal, os pescadores artesanais e, assim, também os botos. Ainda, existe um Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial no livro de Registro dos Saberes do IPHAN (o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para registrar a pesca cooperativa, na Barra e em Laguna, como patrimônio cultural brasileiro. E, há poucas semanas, o governador do Rio Grande do Sul assinou uma lei que torna a pesca cooperativa na Barra do rio Tramandaí relevante interesse cultural do Estado.
São pequenas grandes vitórias. Mas é preciso estarmos sempre atentos. Porque o desenvolvimento propõe, continuamente, formas desonestas de impulsionar o “progresso” sobre as vidas. Ora são portos, ora são pontes. E por isso é tão importante lembramos da potência de nossas ações quando atuamos coletivamente.
O Projeto Botos da Barra realiza um trabalho coletivo e interdisciplinar e, felizmente, ganha cada dia mais mãos! É desenvolvido por profissionais, professores/as, estudantes e colaboradores/as vinculados ao Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) e ao Campus Litoral Norte (CLN), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Todas as histórias acima mencionadas foram gentilmente contadas a nós, enquanto projeto de extensão e pesquisa, pelos pescadores artesanais de tarrafa, em especial os pescadores “amigos do boto” vinculados ao projeto. Pescadores artesanais profissionais que tanto nos ensinam e aos quais agradecemos imensamente. Algumas delas podem ser encontradas completas aqui, e foram eles que nos ajudaram a selecionar.
Além disso, através do trabalho de estudantes, professore/as, profissionais e colaboradores/as do projeto,outras tantas pessoas ao longo dos últimos anos também já puderam ouvir algumas dessas histórias e conhecer a pesca cooperativa. Esse é sempre o primeiro passo. Porque, afinal, é assim mesmo como dizem: só conservamos aquilo que conhecemos. E se nos toca o afeto, aí sim, fazemos a conservação ser mais efetiva.
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