Vincent Kurt Lo, do Ibama, lembra da criação das primeiras áreas de soltura

Nosso texto deste mês será uma entrevista com Vincent Kurt Lo, biólogo e analista ambiental do Ibama em São Paulo desde 2002. Ele é responsável, junto com sua equipe, por um projeto de áreas de solturas implementado a partir de 2004 que tinha o objetivo de atender as demandas dos centros de triagem e reabilitação de animais silvestres.

O fato de Vincent já ter trabalhado no Cetas da Divisão da Fauna Silvestre (Depave-3) da Secretaria de Verde e do Meio Ambiente da prefeitura de São Paulo por cinco anos e gostar de observar aves em vida livre foram fatores decisivos que impulsionaram seu desejo de que os centros de triagem priorizassem o retorno dos animais que eram atendidos ao seu habitat. E isso foi planejado para ser feito por meio da criação e do desenvolvimento de áreas de soltura.

Silvana Davino – Antes da criação desse novo programa para devolver os animais à natureza, qual era a destinação da fauna apreendida com traficantes?
Vincent Kurt Lo – Logo nos primeiros meses após ingressar no Ibama, me incomodou muito o fato de que o principal destino dos animais silvestres apreendidos era o cativeiro, como criadouros e zoológicos. Existia muito poucos centros de triagem e o seu papel básico estava sendo buscar esses empreendimentos de cativeiro para receber os animais para, desta forma, liberar espaço para mais apreensões. Para os animais, apenas mudava o endereço da prisão. Nos Cetas, pouco se falava sobre processos de reabilitação, viveiros para agrupamento e exercícios de voo, testes de fuga e aversão a predadores, incentivo a comportamento exploratório, utilização de alimentos mais próximos do natural, etc.

Silvana Davino – A partir de quando foi criado esse projeto? Quais foram os principais desafios para implementar o projeto, realizar protocolos e escolher os locais para as solturas? Como foi avaliado o sucesso das solturas? Houve resistência de instituições acadêmicas e de pesquisas?
Vincent Kurt Lo – Poucos Estados do país cadastravam áreas de soltura. Além de São Paulo, sabíamos de Minas Gerais e talvez mais um ou outro. Em 2004, elaboramos algumas diretrizes básicas para o cadastro de áreas de soltura e, dentre os processos existentes, poucos se encaixaram e conseguiram atender. Mas a partir desta padronização e seleção, elevou-se a régua, estabelecendo-se um critério mais exigente e também o aprimoramento dos interessados. Por exemplo, dentre os protocolos, havia a necessidade de contratação de profissional especializado, como biólogo e veterinário, implantação de viveiros e estruturas de apoio, disponibilização de suplementação (comedouros), trabalho educativo junto aos funcionários e população do entorno das áreas de soltura e até monitoramento dos animais soltos.

Não havia uma padronização sobre o sucesso nas solturas, o que até hoje é um desafio, pois existem diferentes metodologias e depende do grupo ou até da espécie a ser considerada. Entretanto, alavancou-se procedimentos visando observar os animais soltos, estabelecer marcação temporária visível externamente, registrar a sobrevivência, a dispersão, a reprodução e indicadores que auxiliaram muito na avaliação do sucesso. Foi um momento frutífero de parcerias com ONGs, pesquisadores, instituições veterinárias, universidades e laboratórios particulares de genética. Mas, ao mesmo tempo, foi um período de grande resistência por parte de alguns pesquisadores ou grupos da academia muito arraigados não só à precaução, mas talvez a um catastrofismo exacerbado.

Os principais questionamentos se baseavam na questão sanitária e genética, não sem motivos, mas com várias frentes de discussão, polêmica e controvérsia. Para alguns, o melhor era não fazer nada e continuar como estava, sendo que a visão mais extremada considerava todos os animais retirados da natureza como inúteis à conservação in situ e, às vezes, até ex-situ (em cativeiro). As discussões, apesar de ferrenhas, possibilitaram o aprimoramento dos trabalhos, o desenvolvimento de parcerias, o surgimento de novos centros de triagem e de reabilitação e a criação de áreas de soltura que também realizavam o monitoramento (ASMs) e, consequentemente, mantiveram a perseverança na continuidade dos trabalhos, ainda que sob críticas, mas com os mínimos cuidados técnicos. Aos poucos, os resultados foram surgindo, muitos deles compilados em revistas inéditas do Ibama sobre os Cetas e as áreas de soltura, em publicações de 2006, 2008, 2010 e 2012.

Saliento que o apoio das instâncias superiores do Ibama e de colegas do órgão, dentre os quais destaco o da analista ambiental Jury Seino, foram fundamentais para que não houvesse a desistência em possibilitar a segunda chance de vida livre aos animais resgatados.

Felizmente, muitas instituições acadêmicas e mesmo pesquisadores isolados acabaram acreditando e contribuindo para o desenvolvimento e o aprimoramento dos trabalhos de soltura de animais silvestres, possibilitando a construção de uma sólida concepção de que a restauração faunística não só é possível, quanto desejável. É claro, como tudo na vida, com os devidos cuidados técnicos.

Silvana Davino – Qual a importância da educação ambiental com a comunidade de entorno nos locais de soltura? Conte-nos um pouco sobre esse trabalho realizado pelo Ibama?
Vincent Kurt Lo – O envolvimento da comunidade local é essencial para o sucesso dos trabalhos de soltura e da conservação da fauna. Podem denunciar caçadores, avisar caso sejam encontrados animais soltos que estejam debilitados e mesmo auxiliar no monitoramento. De 2009 a 2011 foi grande a promoção de campanhas de combate ao tráfico de animais, com a difusão de diversas palestras e materiais sobre a importância da fauna. Foi criado o que denominamos de P3F – Programa Permanente de Proteção à Fauna. O tema das campanhas foi: “Isto acontece porque você compra”, para alertar sobre a aquisição de animais silvestres como mola propulsora do tráfico. Em 2013, com os Cetas e áreas de soltura ainda sob gestão do Ibama, elaboramos aqui em São Paulo uma revista ilustrada sobre a possibilidade e a necessidade de devolução dos animais à natureza: o gibi Vida Livre – Um Sonho Animal, uma continuidade do gibi Liberdade e Saúde, do Ibama do Piauí.

Entretanto, as ações são geralmente pontuais e, infelizmente, a educação ambiental é uma das áreas que o Ibama ainda tem muito a crescer e desenvolver. Com esse novo governo iniciando em 2023, boas perspectivas se descortinam pela frente.

Silvana Davino – A partir de 2011, a gestão de fauna em cativeiro no Brasil deixa de ser do Ibama, passando a atribuição aos Estados, através das secretarias de Meio Ambiente. Como e por que se deu essa transição?
Vincento Kurt Lo – O artigo 23 da Constituição Federal de 1988 já previa a gestão compartilhada de fauna entre os entes federativos. Entretanto, todas as atribuições relacionadas à fauna estavam acumuladas sobre o Ibama, mesmo com exíguos recursos humanos. Desde 2008, se iniciou a descentralização da gestão da fauna silvestre no estado de São Paulo, por meio de um acordo de cooperação técnica e, com a estruturação da então Secretaria de Meio Ambiente, inclusive após concurso que possibilitou a constituição de uma equipe técnica, em 2011 pôde-se realizar o repasse dos primeiros processos, referentes a zoológicos e criadouros.

O advento da Lei Complementar nº 140, de 2011, asseverou que a competência para autorização da fauna em cativeiro seria do órgão ambiental estadual e o Ibama de São Paulo já estava adiantado nessa descentralização da gestão. A transição foi muito tranquila e harmoniosa, repassando-se então nos anos subsequentes de 2012 e 2013 os demais empreendimentos de fauna em cativeiro do Ibama para o órgão ambiental estadual. Desta feita, coube ao órgão federal a competência de controle de fauna no âmbito nacional e, principalmente, em vida livre, com a elaboração de listas de espécies ameaçadas, importação e exportação, transporte interestadual, espécies exóticas e migratórias, manejo e apanha em vida livre, etc., além do manejo, mitigação e conservação da fauna nos processos de licenciamento ambiental federal.

Silvana Davino – Mais de 10 anos se passaram desde o pioneiro projeto de criação de Áreas de Solturas e Monitoramento (ASMs). Como você vê a gestão de fauna hoje? Você acredita que o tráfico de animais possa diminuir no Brasil?
Vincent Kurt Lo – Nos últimos 9 anos, tenho atuado mais com avaliação de impacto e sua mitigação sobre a fauna de vida livre nos licenciamentos ambientais federais, portanto não tenho conseguido acompanhar com muita proximidade os trabalhos dos Cetas e das áreas de soltura. Mas tenho sentido que as sementes que implantamos estão gerando frutos, com a disseminação das áreas de soltura e de projetos de reintrodução, inclusive com a efetiva participação e até realização por parte de instituições de pesquisa e universidades.

Aqui em São Paulo, temos um órgão ambiental estadual estruturado, o que, infelizmente, creio que não acontece em muitas outras unidades federativas pelo país afora. Felizmente, tenho observado também muitos projetos mais estruturados de soltura de animais apreendidos, bem como dos resultantes da conservação ex-situ (em cativeiro), tornando-se importantes ferramentas para a refaunação dos nossos ecossistemas.

Ainda testemunhamos muitos ilícitos de captura de animais silvestres. Minha percepção pessoal é que a cultura do passarinho na gaiola tem diminuído e tenho boas esperanças nessa mudança. Para a redução do tráfico de fauna, creio que deva haver várias ações em diferentes frentes, não apenas na fiscalização, mas também em educação ambiental, com incentivo à adoção de animais domésticos e à contemplação em vida livre, como a observação de aves, além da revisão da legislação, para que algumas penalidades sejam menos brandas.

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