Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Nas noites mais quentes do subúrbio carioca, até o final da década de 1980, era comum que as casas recebessem a visita, quase sempre indesejada, de uma grande mariposa preta. Muitos viam nisso um sinal de azar, outros confundiam a mariposa gigante e de voo vigoroso com um morcego – o que não melhorava a situação. Trata-se da espécie Ascalapha odorata, um inseto realmente impressionante. Medindo até 17 centímetros de ponta a ponta das asas anteriores, é um dos maiores insetos que frequentam as cidades. De coloração castanho-escura a negra, com um belo padrão de manchas arredondadas diversas, ela é popularmente chamada de mariposa-bruxa, mariposa-negra, bruxa-negra ou, simplesmente, bruxa.
A mariposa-bruxa tem ocorrência natural da América do Sul tropical ao sul dos Estados Unidos – mas, eventualmente, chega até o Canadá, além de ter sido introduzida no Havaí. Ao longo dessa grande área de distribuição, sendo um bicho de ocorrência urbana, não é surpreendente que a mariposa-bruxa tenha assumido grande importância cultural, quase sempre de conotação negativa. A crendice mais disseminada no Brasil diz que, quando esse inseto invade uma casa, trata-se de um sinal indicando que algum morador dali vai morrer. E só há uma forma de se evitar o agouro: matar a mariposa.
Segundo a página de Facebook Nomes Científicos, a crendice diz que, ao ver uma mariposa-bruxa em casa, deve-se matá-la sem tocar nela e, posteriormente, queimá-la com álcool e sal grosso para evitar o mau agouro. Em algumas regiões, o significado cultural da mariposa-bruxa é mais feliz para o inseto: segundo os blogs Biorritmo e Insetologia, após a morte de algum morador, a visita da mariposa representa a alma da pessoa falecida se despedindo de seus entes queridos. O fato é que, diante do significado quase sempre negativo das superstições a ela associadas, não é de se estranhar que se observe a diminuição populacional dessa mariposa em muitas localidades.
Dentro da taxonomia zoológica, Ascalapha odorata está classificada na ordem Lepidoptera (que inclui todas as borboletas e mariposas), na superfamília Noctuoidea e na família Erebidae, da qual é um dos maiores representantes. A espécie foi descrita pelo célebre criador das regras da nomenclatura binominal, o sueco Carolus Linnaeus (Lineu), originalmente como integrante do gênero Phalaena. O nome de batismo da espécie, Phalaena odorata, significa algo como “mariposa de cheiro”, em alusão ao odor que o inseto exala.
Durante um tempo, a espécie foi enquadrada no gênero Erebus, nome alusivo a Érebo, que, na mitologia grega, representa a personificação das trevas e da escuridão. Filho de Caos e um dos maiores inimigos de Zeus, Érebo deu seu nome a uma região do Hades, por onde os mortos tinham de passar imediatamente depois da morte para entrar no Submundo (inferno).
Foi outro famoso naturalista, o alemão Jacob Hübner, que, em 1809, transferiu a espécie para o gênero Ascalapha, classificação que é usada atualmente. Ascalapha é nome alusivo a Ascálafo, demônio horticultor do Submundo, onde trabalha para Hades. É curioso notar que, até do ponto de vista da nomenclatura zoológica, a mariposa-bruxa está associada ao sinistro e à morte.
Estudos apontam que os nomes dos organismos podem influenciar a forma como eles são vistos. Ou seja, muitas vezes, o nome comum de uma espécie influencia a atitude das pessoas em relação a ela. Adicionalmente, fontes de informação não formais, como televisão, jornais e internet, além de crendices, lendas e causos, podem não fornecer referências adequadas, contribuindo para que o imaginário popular ajude a perpetuar a má fama.
Ao longo da história, tem-se creditado aos bruxos e às bruxas (notadamente às mulheres) uma sabedoria secreta, frequentemente ridicularizada pelas religiões institucionalizadas e pela comunidade científica. Isso causou e justificou a perseguição e o extermínio das bruxas ao longo do tempo, além da desvalorização do saber feminino. Assim, como um pré-conceito, a associação com o nome “bruxa” traz para a mariposa uma conotação negativa.
Nesse cenário, o investimento em divulgação científica pode ser um caminho interessante para se desmistificar as crendices e superstições, especialmente aquelas que causam danos à biodiversidade. Mas não é fácil se desconstruir o que foi forjado por gerações, ainda que sem qualquer base científica. Certa vez, em uma palestra, mencionei a questão da mariposa-bruxa e as crendices que a cercam. Quando finalizei a apresentação, uma espectadora me abordou e disse que, de fato, essa mariposa dá azar, pois os pais dela haviam morrido após a entrada de uma na casa. Assim, o mero acaso acabou culpabilizando a mariposa-bruxa, cujo único crime foi invadir um território alheio atraída por uma fonte de luz.
Dentro desse quadro, a reversão de expectativas pode ser fundamental. É necessário a Ciência se fazer presente. A mariposa-bruxa acabou, assim, sendo inspiração para o nome e o símbolo de A Bruxa, revista dedicada à publicação de artigos que versem sobre a associação entre Ciência e Cultura – algo que ocorre com a Ascalapha odorata. Mas, dentro das circunstâncias, a cultura popular pode ser um adversário formidável: ao divulgar nas redes sociais, em 2017, que a editora Luci Boa Nova Coelho (UFRJ) e eu estávamos então montando uma nova revista – e revelar o nome da revista –, recebi algumas sugestões, até mesmo de desconhecidos, para trocar no nome por ele “dar azar”.
Para saber mais
O conteúdo deste artigo está dentro do campo da Zoologia Cultural, o estudo da presença simbólica dos animais nas distintas manifestações da cultura, bem como suas possibilidades de utilização no ensino, na divulgação científica e na preservação da biodiversidade.
Leituras adicionais
– Colóquio de Zoologia Cultural
– “A bruxa tá solta”: animais e plantas com nome comum alusivo ao termo “bruxa” e derivados”, de 2017 e publicado em A Bruxa
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