Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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Um dos animais mais mal interpretados é o urubu (Coragyps atratus).
Seu nome científico resulta da combinação das palavras gregas korax (corvo) e gups (abutre, urubu) com aatratus, ater (latim), que significa vestido de luto, preto. A mistura resulta em “abutre preto”. No Wikiaves é possível achar uma completa descrição dos hábitos desta espécie.
Mas afinal, por que os urubus são mal interpretados?
Quando falamos de soltura, a imagem mais comum é a de alguém abrindo uma gaiola de Passeriformes, como canarinhos-da-terra (Sicalis flaveola) ou coleirinhas (Sporophila lineola), duas espécies ainda muito traficadas e que geram uma constante demanda para as áreas de soltura (ASM). Aí as comparações são inevitáveis, os passarinhos são coloridinhos e graciosos, já os urubus…
Ok! Agora é a hora em que paramos o filme e entra um narrador para fazer uma reflexão com a imagem congelada.
Por que achamos os passarinhos tão graciosos? Seria por sua capacidade de voo? Nesse caso os urubus dão de 10 a 0! Voam altíssimo, a mais de 800 metros! E aí, nessa altitude, não tem animal mais gracioso, ágil e preciso! Eles fazem manobras arrojadas e, às vezes, vemos alguns indivíduos desafiando até as condições climáticas mais adversas. São uns mestres no ar!
Além de tudo, os urubus ensinam e aceitam outras aves no seu plano de voo. Sem contar a “turma humana”. que utiliza da observação do voo dos urubus para identificar as térmicas e voar junto. Já os canarinhos voam né, mas é aquela coisinha, de um galhinho para outro e já deu.
Ok, mas os passarinhos são coloridinhos e os urubus, negros. Nesse momento, o narrador diz: “já faz tempo que o preto é uma das cores mais elegantes de nos vestirmos. O preto está na moda a mais de 200 anos!”
Ah, mas pera aí… E aquele “arominha básico” de qualquer urubu?
Nosso narrador intervém de novo e responde: “depende do que eles comem.” Os urubus são animais necrófilos, mas claro também são oportunistas e podem predar ovos de outras espécies e animais menores, entre outras possibilidades. Inclusive, eles estão sempre preocupados com a higiene, tomando banho e abrindo suas asas ao sol para secar. Também exibem um comportamento de limpeza, tanto sobre si mesmo como sobre outros, denominado allopreening. Além disso, sua cabeça e suas patas são como se fossem feitas de neoprene, justamente para não grudar sujeira. Seria bom se os humanos fossem assim, sem grudar sujeira!
A ASM Projeto Jatayu (Santo Antônio do Pinhal – SP), nome dado em homenagem a um urubu legendário da cultura asiática, recebe cerca de 30 urubus por ano. Alguns são indivíduos jovens que não conseguiram se alimentar sozinhos, alguns são filhotes cujos pais fizeram ninhos em locais com muito trânsito de gente, sendo alguns resgatados e outros atropelados. Nosso trabalho é restabelecer sua saúde e prepará-los para a volta ao mundo real. E é no trato diário com esses animais que se percebe sua magnanimidade.
Urubus têm poucos predadores naturais, pois são topo de cadeia alimentar, o que os faz apresentar um comportamento tranquilo e atento, pois, por viverem tão próximos de nós, aprenderam a nos observar atentamente e responder de forma ativa às nossas ações. Todos os urubus que recebemos sabem, por exemplo, o “valor” de um bom saco de lixo! E isso se dá não pelo olfato, que nessa espécie é pouco desenvolvido, mas pela avaliação visual e pela memória!
Agora voltemos ao nosso filme, e continuemos a contemplar canários, coleirinhos e urubus, cada um com sua graça e especialidade, exercendo sua função ecológica e lutando por sua sobrevivência. O objetivo do artigo de hoje é refletir sobre o porquê escolhemos algumas espécies como “boas e lindas” e relegamos outras ao abismo de nossa apreciação estética, sem pensarmos que, com isso, as condenamos a todo tipo de maus tratos e brutalidades.
Nossa sociedade já anda muito carregada de emoções negativas. Por isso, quando você, amigo leitor, se deparar com um urubu no futuro, lembre-se desta artigo. Reflita se sua apreciação do que resta de nosso mundo natural não esta impregnada de preconceito e se, com isso, quem perde é você mesmo por deixar de perceber que um simples urubu pode ser inspirador de uma maneira profunda.
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