Usos e exploração histórica do peixe-boi

No nosso último artigo do Fauna News, escrevi sobre algumas das fantásticas adaptações do peixe-boi para o mergulho e a flutuabilidade. Neste artigo, vou apresentar outras características e usos desse fascinante animal.

O peixe-boi é o maior mamífero aquático da Amazônia e endêmico dos rios da região. É robusto, forte, podendo alcançar quase três metros de comprimento e 420 quilos. Entretanto, é o menor das três espécies de peixes-bois existentes no mundo.

Sua dieta é basicamente herbívora, alimentando-se de grande variedade de plantas aquáticas e semiaquáticas existentes nos rios e lagos da Amazônia.

Embora possua uma cauda possante arredondada e achatada dorsoventralmente (como os remos utilizados pelos ribeirinhos locais), que utiliza para impulsionar o corpo e se defender, o peixe-boi é um animal inofensivo e não ataca.

Uma das estratégias utilizadas pelo peixe-boi para se proteger é o uso de uma audição bastante sensível, que lhe permite ouvir frequências entre 8 kHz e 32 kHz e até ouvir sons muito acima do alcance dos ouvidos humanos, detectando frequências de até 90,5 kHz. Só para comparação, os humanos têm um alcance auditivo de cerca de 20 Hz a 20 kHz.  Assim, ao menor ruído, podem evadir-se rapidamente para escapar de potenciais predadores.

A estrutura auditiva do peixe-boi  reflete sua adaptação para a vida aquática. É formada por ossos grandes e densos, muito evidentes no crânio estreito e relativamente curto.

O complexo tímpano-periótico não é fusionado aos ossos do crânio e presume-se que as ondas sonoras passam diretamente do ambiente aquático para os tecidos moles da cabeça e daí para o ouvido médio.

Tradição popular para curar a surdez
Essa característica fez com que parte da população acreditasse que o pó do osso do ouvido do peixe-boi, ingerido em alguma bebida ou alimento, tinha um poder curativo para surdez, ou que o uso do osso do ouvido como pingente amarrado em volta do pescoço atuaria como tratamento para esse mal.

Além dessas propriedades, os ossos densos e largos da espécie também tinham vários usos. A escápula, larga e grande, era usada como pá para mexer a farinha no tacho quando estava sendo torrada.  As costelas, densas e pesadas, eram cortadas para fazer a gaponga (pedaço de osso ou semente dura,  amarrada em um fio longo a uma pequena vara, usada para bater na superfície da água para atrair peixes comedores de frutos no igapó), muito utilizada na pesca do tambaqui, peixe frugívoro muito apreciado na Amazônia.

Também se fabricavam amuletos e adornos como colares e pulseiras, além de miniaturas de animais e outros enfeites esculpidos.

Peixe-boi como alimento e matéria-prima do couro
Mas além dos ossos, sua gordura, carne e couro foram também motivos da sua caça ao longo dos séculos. O peixe-boi já era explorado pelas populações tradicionais antes da chegada dos europeus e, posteriormente, foi intensamente explorado pelos colonizadores e residentes.

Registros do século 18 mostram que, em dois anos, na década de 1780, somente o pesqueiro Real de Vila Franca (próximo da cidade de Santarém, no Pará) produziu mais de 58 mil quilos de carne salgada e seca do animal e cerca de 48 mil quilos de banha, sendo estimados mais de 1.500 peixes-bois mortos no período para esse fim. Outros registros indicam que mais de 3.873 arrobas (1 arroba equivale a cerca de 15 quilos) de carne seca e salgada e 1.613 potes (cada pote pesava entre 20 e 30 quilos) de gordura e mixira (carne cozida e conservada na própria gordura do animal)  eram exportados anualmente para a Europa, além de abastecer diversos povoamentos existentes no Brasil.

Dados históricos sobre a venda do couro do peixe-boi revelaram que o animal foi intensamente caçado entre 1934 e 1954, pois seu couro era usado para a fabricação de correias para maquinários, teares e vários outros implementos industriais. Entre 1938 e 1942, estimou-se que cerca de 19 mil peixes-bois foram caçados para obtenção do seu couro. Na década de 1950, ocorreu um abrupto declínio do número de couros de peixes-bois comercializados, coincidindo com o advento da produção da borracha sintética para a fabricação das correias e de outros produtos vulcanizados.

Com a exploração indiscriminada  ao longo de séculos, as populações naturais da espécie foram drasticamente reduzidas, levando o animal ao estado crítico de conservação. No entanto, estudos moleculares indicaram uma recuperação das populações. Essa evidência coincide com a implementação da Lei nº 5.197, que passou a proteger a espécie desde 1967, além de outras medidas de proteção nos diferentes países onde o peixe-boi ocorre.

Dados publicados pela IUCN (2014), no entanto, sugerem que existe variação nas tendências populacionais nos diferentes países onde o peixe-boi ocorre. Eles apontam para a alta vulnerabilidade e tendência geral de declínio da espécie, requerendo cuidados constantes na proteção e conservação do peixe-boi da Amazônia.

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