Por Marlon Cezar Cominetti
Biólogo, mestre e doutor em Doenças Infecciosas e Parasitárias pela Faculdade de Medicina pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (Famed-UFMS). É é coordenador do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) em Campo Grande.
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Tendo o primeiro artigo da coluna abordado a função dos Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) – “E afinal, para que servem os Cetas?”, publicado em 3 de julho de 2019 –, julguei interessante apresentar a rotina de trabalho do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) de Campo Grande, Mato Grosso do Sul (MS), para que a dinâmica dos trabalhos de reabilitação sejam mais “palpáveis” para pessoas alheias às rotinas. Obviamente que cada Cetas possui sua particularidade, mas, em geral, os princípios são os mesmos.
O Cras de MS, fundado em julho de 1987 e um dos primeiros Cetas criados no Brasil, tem como objetivo a recepção, triagem e dar destino aos animais silvestres apreendidos em operações de combate ao tráfico, atropelados em rodovias estaduais e os entregues voluntariamente pela população.
Todos os animais entregues passam por etapas de controle, visando a melhor atenção e cuidado dos animais bem como a segurança dos técnicos e da população. Elas são necessárias porque animais silvestres transmitem parasitoses que, em alguns casos, podem ser prejudiciais ao homem e aos animais domésticos. Essas etapas são:
Recepção
se inicia na chegada dos animais oriundos de apreensões realizadas pela Polícia Militar Ambiental, apreensões realizadas pelo Ibama-MS e/ou doações de particulares. Essa é uma das etapas mais importantes, pois nesse momento saberemos o que ocorreu com o animal, bem como todas as informações possíveis sobre o indivíduo, permitindo dar o destino correto após sua recuperação e reabilitação. Assim, cada detalhe é importante para que o trabalho final seja o restabelecimento do animal nas condições, se não iguais, o mais semelhante possível à sua situação pré-trauma, tanto físico como psicológico.
Quarentena
Consiste no isolamento do animal para observações, visando evitar contaminação de outros animais que já estejam no Cras. O período de quarentena é variado e o animal é marcado, sexado (identificação do sexo) e medicado, caso necessário. Essa etapa é uma das mais dolorosas, pois é o momento em que os animais passarão por exames e, caso tenham algum problema, como fraturas ou infecções, ficarão isolados para tratamento e preparação para cirurgias. Esse período de isolamento é estressante para o animal, apesar de todos os cuidados empregados.
Nessa fase, o cuidado é mais intenso e individual. Cada animal é uma vida e, quando não é possível recuperá-lo e ele vai a óbito, uma parte de nós vai junto, pois todo um esforço, carinho, atenção e inteligência foram empregados para que a vida permanecesse.
Acompanhamento nutricional, sanitário e comportamental
Após a quarentena, o animal é destinado a recintos individuais ou coletivos, de acordo com suas características biocomportamentais. Durante o período de permanência no centro, cada animal é avaliado de acordo com sua origem, tempo de cativeiro, estado físico, idade e sexo, entre outros fatores. Essa etapa é o momento da socialização dos animais com os de sua espécie – caso de psitacídeos criados em cativeiro ilegalmente – e de preparação para a caça – filhotes de predadores ou animais que passaram por cirurgias e precisam recuperar plenamente suas habilidades – ou para a simples busca por alimento e proteção contra predadores.
Cada animal, mesmo em grupo, é analisado individualmente, pois precisamos saber se está se alimentando adequadamente, como está seu peso, estado sanitário etc. Também é analisado o comportamento do indivíduo, ou indivíduos, no caso de grupos, para garantir que seja simulado, na medida do possível, o ambiente natural. Um exemplo prático é com a alimentação de psitacídeos. Assim como toda ave, o período de luz, ou escuridão, define sua busca por alimento. Conforme as estações do ano passam, mudamos o horário de alimentação para garantir que todas as aves se alimentem bem, mas não em demasia para que não fiquem obesas. Assim, no verão, com dias mais longos, deixamos a alimentação vespertina para mais tarde, enquanto que no inverno, alimentamos mais cedo, pois os dias são mais curtos.
Além dos períodos do dia para alimentação, procuramos balancear a dieta de cada animal, garantindo, assim, que seja oferecido um cardápio próximo ao que o animal encontrará na natureza.
Nessa etapa ocorre o treinamento dos animais para sua futura destinação. Aves são treinadas para voar, caçar – caso de predadores -, e ter medo do homem. Sim, por mais estranho que possa parecer, se o animal tiver medo do homem, mais seguro será para ele e para as pessoas. Tentamos garantir o máximo de isolamento do contato humano nessa etapa. Assim, os tratadores e técnicos são orientados a nunca conversar com os animais, por maior que seja nosso desejo abraçá-los e dar-lhes carinho.
Destinação
As destinações seguem princípios pré-estabelecidos em consenso entre a equipe técnica, considerando-se as condições do animal, e recomendações legais do Ibama e de órgãos internacionais de combate ao tráfico de animais silvestres. Essa etapa costuma ser mais simples em se tratando de manejo, mas mais complexa quando se pensa no local de soltura e seu monitoramento.
Existem várias áreas de soltura cadastradas no Cras. Esse cadastro é feito após vistoria na possível área de soltura com visita em campo – identificando a fauna e as condições da vegetação na região, assentamentos humanos e histórico da área – e análise de imagens de satélite (quando as temos). Costumam ser fazendas com grandes extensões de terra e mata preservada, apesar de também possuirmos áreas menores cadastradas, desde que afastada de chácaras, comunidades ou assentamentos.
Como é virtualmente impossível encontrar uma área totalmente preservada e afastada de pessoas, procuramos dar prioridade para áreas de criação de gado, longe de lavouras. Também escolhemos áreas em que os proprietários não façam “ceva” dos animais para fins turísticos. Temos tido sucesso nesse quesito, pois com diálogo e orientação adequada, a grande maioria dos proprietários de fazendas tem seguido nossas recomendações.
Monitoramento
Os animais são marcados com anilhas – caso das aves – ou microchip – mamíferos e répteis – para que seja possível o seu monitoramento nos locais onde os animais foram destinados, visando coletar informações e acompanhar a adaptação. Devido a uma equipe reduzida para fazer um monitoramento mais intenso, costumamos orientar os fazendeiros a nos avisar caso os animais sejam vistos nas regiões. Essa tática tem sido eficaz, pois os funcionários das fazendas estão todos os dias no campo, observado e nos informando cada evento ocorrido. Isso não anula nosso trabalho de monitoramento, pois vamos para as áreas onde foram soltos animais silvestres para acompanhamento.
Até o momento, a taxa de sucesso tem sido elevada e raras vezes os animais reabilitados foram vistos invadindo áreas humanas, o que demonstra um trabalho eficaz, apesar de todas as dificuldades enfrentadas.
Desde a sua criação, o Cras já recepcionou mais de 300 espécies entre aves, répteis e mamíferos, ultrapassando o número de 56 mil animais. Desse total, em média, 70% são aves, 20% mamíferos e 10% répteis. Isso permitiu formar no Estado uma equipe técnica habilitada em identificar os diferentes espécimes apreendidos, sua área de ocorrência natural e avaliar clinicamente o estado sanitário de cada um dos animais recebidos, minimizando os riscos ligados às ações de soltura indiscriminada de animais na natureza.
Esperamos continuar com nosso trabalho ajudando animais, orientando a população, treinando acadêmicos e prestando um serviço de qualidade para a sociedade.