Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
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Imagine, caro leitor, dois diferentes centros de triagem de animais silvestres (Cetas), em duas diferentes regiões do Brasil, vivendo duas diferentes situações hipotéticas. Um deles recebendo, de uma só vez, trezentos animais, originários de apreensão e o outro recebendo apenas um animal, de entrega voluntária. Qual destes Cetas deverá ter mais dificuldade em cumprir suas atribuições (na recepção, triagem e destinação dos animais) e prestar um melhor serviço para a sociedade? Será que a grande diferença entre as quantidades de recebimento nesses dois casos conta muito?
Assim como na natureza um grupo de animais tem diferentes estratégias de sobrevivência, privilegiando o indivíduo ou o grupo com o oferecimento de recursos disponíveis para poucos indivíduos ou espalhando esses recursos na geração da maior quantidade possível de descendentes, o cotidiano dos Cetas parece viver a mesma dicotomia de características.
Cada animal recebido em um Cetas apresenta uma história individual, expressa na sua vida, idade, condição comportamental ou fisiológica. Mas acontece que, em determinadas situações, essa história pode conter muitos aspectos comuns quando os indivíduos se somam em uma mesma circunstância, como um mesmo lote de apreensão ou grupo biológico, por exemplo.
É muito frequente observarmos características comuns a certos grupos de animais recebidos pelos Cetas, como os do gênero Sporophila, mais especificamente o como o coleirinho (Sporophila caerulescens), por exemplo. Aves, de certo porte, de algumas espécies bem comuns e de populações bem estabelecidas e, infelizmente, muito frequentemente mantidas em cativeiro ilegal são muito apreendidas e encaminhadas para os centros de triagem. Esses animais, recebidos às centenas ou milhares em muitos Cetas do Brasil, embora necessitem de atenção e cuidados individuais, via de regra podem receber muitos cuidados em âmbito coletivo, ao se formarem lotes ou grupos, como se fossem um grande “indivíduo”.
Isso se dá na nutrição, na contenção, na reabilitação e na destinação, dentre outros fatores relacionados ao manejo. Dado o exemplo do coleirinho, poderíamos extrapolá-lo para outras espécies como o canário (Sicalis flaveola), o tico-tico (Zonotrichia capensis) e tantas outras muito comuns nos centros de triagem e que têm seus manejos tratados com muitos aspectos coletivos, transformando os grandes grupos em lotes únicos como grandes indivíduos.
Por outro lado, alguns indivíduos recebidos pelos Cetas têm característica de manejo diferentes. Mesmo apenas um indivíduo, pelas características de porte, espécie, idade, grupo taxonômico, etc., exige tratamentos individualizado, às vezes demorados, caros e tecnicamente complexos. Em muitos casos, dependendo do indivíduo recebido e da especificidade e complexidade de seu manejo, o centro de triagem pode não conter toda a estrutura necessária para a sua recepção, triagem, tratamento, manejo e destinação. Nessas situações, ele tem que se “reinventar” e se “virar”, buscando apoio e parcerias com clínicas, hospitais veterinários, instituições de ensino e pesquisa, zoológicos ou parceiros especialistas que possam contribuir com o cuidado daquele animal. Nesses casos, esses únicos ou poucos indivíduos podem movimentar, durante muito tempo, quase toda a estrutura operacional de um Cetas ou extrapolando institucionalmente os cuidados necessários para outros agentes envolvidos.
Então, voltando ao questionamento inicial, avaliando as duas situações hipotéticas, um determinado Cetas pode receber um lote de trezentas aves, de quatro espécies diferentes (coleirinhos, tico-ticos, canários e pintassilgos). Todos recebendo avaliação e tratamentos individuais, mas, pelas suas características, têm um manejo e destinação tratados coletivamente e, por esse motivo, muito mais facilitada. Do outro lado, temos o outro centro de triagem que recebeu, por exemplo, uma onça-parda (Puma concolor) mantida desde filhote em cativeiro. Pelo porte, pelas características biológicas e comportamentais individuais do animal, relacionadas principalmente ao tipo de vida que levou desde que nasceu, com certeza vai demandar muito tempo e recursos para o seu manejo e destinação.
Dessa forma, com certeza, o Cetas que recebeu apenas um animal vai ter muito mais trabalho para cumprir suas prerrogativas que aquele que recebeu o lote de trezentos. O grande “indivíduo”, representado pelo lote de 300 passarinhos recebido por um dos centros de triagem acarretará bem menos trabalho e demandará bem menos recursos que a onça-parda recebida pelo outro Cetas. O que nos leva ao conceito, óbvio neste momento, que a quantidade de animais recebidos, embora tenha o seu papel como indicativo de sua relevância e importância, não deve ser analisado isoladamente, sem que haja uma avaliação das variedades de grupos e espécies recebidas pela instituição.
A quantidade de animais versus a qualidade, no sentido de diversidade de espécies recebidas, contudo, é apenas um dos aspectos dos quais se pode avaliar o tamanho do conjunto de desafios aos quais os Cetas são submetidos e podem ser um parâmetros para medir ou avaliar a importância e o trabalho que o centro pode executar. Esse assunto, contudo, poderá ser desenvolvido em outros artigos, que são uma forma muito interessante de se conhecer o Universo CETAS.