Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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Já escrevi aqui que a ação de soltura é quase como o envio de uma sonda de coleta de dados, isto é, através da soltura é possível obter uma gama muito variada de informações sobre os animais e sobre o meio ambiente onde foram soltos. A soltura é tão importante, sobretudo no que tange a passeriformes, que também funciona como um termômetro sobre a própria situação do tráfico fauna no Brasil.
O WWF-Brasil está realizando um relatório sobre a atual situação do tráfico no Brasil. A organização criou uma página em seu site para uma consulta pública em que são elencados os diversos aspectos que fazem parte do problema. Na pesquisa são apontados 16 aspectos que, de uma forma ou de outra, têm relação com a questão. Ao explorarmos cada ícone, há propostas de mudanças que, se implementadas, poderiam diminuir o impacto do tráfico sobre nossa fauna. A previsão é de que a versão definitiva do relatório seja divulgada até o final do ano.
Essa pesquisa chamou muito a minha atenção, pois foi a primeira vez que vi, em um único local, a apresentação de uma visão multifacetada sobre o problema. A apresentação também me fez refletir sobre o porquê os resultados no combate ao comércio ilegal de animais silvestres são tão pífios. A resposta parece estar na própria complexidade do quadro, com os seus diversos atores institucionais e sua teia de relações.
Situações complexas e que envolvem dinheiro, porque, sim, o tráfico é mesmo muito lucrativo, e com muitos atores oficiais ou não, cujo poder de tomada de decisão é restrito, geram o cenário ideal para que haja um contínuo empurrar de responsabilidades e de postergação de ações que de fato combatam e erradiquem o tráfico de fauna. Ainda, esse tipo de cenário complexo e frágil sofre influência direta de visões políticas de ocasião, que nada têm de técnicas, mas que podem deformar a ação dos órgãos públicos envolvidos. Para darmos um exemplo sobre como isso pode acontecer, basta olharmos para a situação da caça de animais silvestres no Brasil, que, apesar de proibida por lei, acontece normalmente em todos os Estados da federação e tem, inclusive, ampla divulgação pelas redes sociais dos produtos dessa atividade criminosa.
Essa situação me leva a uma segunda reflexão, sobre como os atores que trabalham com fauna silvestre vão, ao longo do tempo, perdendo a força e sofrendo uma espécie de exaustão com evidente diminuição de sua atuação, mesmo que prevista em lei.
Mas voltemos à questão dos passarinhos e das solturas. Naturalmente, e por esse estado de coisas, o maior grupo traficado é o dos passeriformes, com especial predileção dos traficantes por algumas espécies como coleirinhas e trinca-ferros. O objetivo do tráfico é o dinheiro e pássaros canoros são objetos de desejo de muitos consumidores que compram os espécimes da fauna silvestre, apesar do grande sofrimento que isso causa. As compras acontecem nas famosas “feiras de rolo”, que, apesar dos pesares, continuam ocorrendo normalmente, e pela internet, como qualquer outro produto. Simples assim.
Afinal, qual a relação da soltura com tudo isso?
Como já escrevemos diversas vezes nesta coluna, soltura de animais é uma ação planejada, com objetivo definido e que é seguida de monitoramento, para avaliação e acompanhamento dos animais soltos.
Então, vamos lá! Resumidamente, as etapas de uma ação de soltura são: primeiro, a preparação da área de soltura para recepção do lote de animais devidamente habilitados do ponto de vista sanitário; segundo, a reavaliação dos animais quando chegam na área quanto a questão sanitária e comportamental; terceiro, a definição do tempo e das condições de descanso ou eventual necessidade de reabilitação; e, por fim, o planejamento da soltura propriamente dita. Ora, se bem realizadas, cada uma dessas etapas produz uma janela para entender parte da situação atual do tráfico. Vejamos como.
A primeira etapa, evidentemente, através da frequência com a qual as áreas de soltura são acionadas para a recepção de lotes, é um poderoso indicativo sobre a eventual distância entre o que é dito oficialmente e o que é de fato praticado, uma vez que são os órgãos oficiais que fazem a apreensão e a destinação de fauna para as áreas de soltura. Outro dado é o próprio número de áreas de soltura regularmente habilitadas junto aos órgãos licenciadores.
Nas etapas dois e três, os dados fornecidos são sobre as condições em que, de fato, são mantidos os animais, tanto pelos antigos “proprietários”, imaginando que eles tenham sido entregues ou recolhidos por algum órgão ambiental, como pelos órgãos de triagem e manutenção de fauna, pois quanto melhor trabalharem, melhor os animais chegarão às áreas de soltura e menos tempo será necessário para seu descanso ou reabilitação.
Por fim, a última etapa, que envolve a soltura e o monitoramento pós soltura, nos fornece os dados sobre quão bem os animais foram capazes de se adaptar à nova condição de liberdade. E, claro, a quantidade de insucessos de solturas e suas possíveis causas. Essa última questão representa, talvez, a mais valiosa fonte de informações sobre o atual estado das coisas, tanto no que tange ao tráfico de animais como sobre o estado de conservação de nossa fauna.
O ponto do artigo de hoje é mostrar um pouco mais a importância da soltura e como essa ação é uma ferramenta importante para compreender a fundo os grandes problemas da atualidade que causam a degradação da biodiversidade em nosso país.
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