Por Carlos Eduardo Tavares da Costa
Biólogo, bacharel em Direito e agente de Polícia Federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Com tantas riquezas naturais, o tema meio ambiente está constantemente em pauta. Em termos criminais, costumamos discutir dois temas principais: fauna (tráfico e caça ilegal de animais) e flora (desmatamento ilegal). Cada um destes dois itens tem, necessariamente, seus detalhes, sejam técnicos ou jurídicos. Muitas vezes esquecemos de tratá-los no aspecto histórico.
Escolhi falar sobre os criadores de fauna silvestre pois, durante muito tempo da minha vida funcional, trabalhei diretamente com eles. Após a sanção da Lei de Crimes Ambientais de 1998, iniciamos, no Rio de Janeiro, estudos sobre o tema, por entender que muitos desses estabelecimentos faziam parte de esquemas criminosos para tentar dar algum aspecto de legalidade aos animais provenientes do tráfico.
Um breve histórico constitucional
Normativas não surgem do nada. São discutidas e aprovadas, direta ou indiretamente, por uma coletividade, assembleias, comissões etc. Da discussão até sua execução, costumam percorrer um longo caminho, dadas as devidas publicidades. Necessariamente, devemos partir da Carta Magna. Nossas constituições, anteriores à de 1967, tratavam pouco ou nada sobre questões ambientais. Os documentos de 1824 e 1891 davam destaque para o desenvolvimento econômico em detrimento à questão ambiental. Durante esse período, a pesquisa e exploração de minérios era prioridade.
Permanecemos praticamente da mesma forma nas constituições de 1934 e 1937. Os entendimentos começaram a mudar a partir da constituição de 1946, quando o Estado chamou para si várias responsabilidades ambientais:
“Artigo 5º – Compete à União:
(…) XV – legislar sobre:
l) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, floresta, caça e pesca.”
O complemento veio com a Lei de Proteção à Fauna (Lei n° 5.197, de 3 de janeiro de 1967):
“Artigo 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.
(…) Artigo 3º. É proibido o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos e objetos que impliquem na sua caça, perseguição, destruição ou apanha.
§ 1º Excetuam-se os espécimes provenientes legalizados.
§ 2º Será permitida mediante licença da autoridade competente, a apanha de ovos, larvas e filhotes que se destinem aos estabelecimentos acima referidos, bem como a destruição de animais silvestres considerados nocivos à agricultura ou à saúde pública.”
O Estado deixou claro a tutela sobre os animais, porém destacou a exceção dos provenientes de estabelecimentos legalizados. Cabe aqui salientar que a ideia inicial, dita por muitos, seria legalizar a criação de animais para, assim, retirar a pressão da coleta deles na natureza. Pessoalmente acredito que o objetivo foi puro e simples comércio.
Mediante licença, a coleta ou apanha de ovos, larvas e filhotes fica autorizada. Autoriza, também, a caça de controle.
“Artigo 6º O Poder Público estimulará:
(…) b) a construção de criadouros destinadas à criação de animais silvestres para fins econômicos e industriais.
(…) Artigo 8º O Órgão público federal competente, no prazo de 120 dias, publicará e atualizará anualmente:
a) a relação das espécies cuja utilização, perseguição, caça ou apanha será permitida indicando e delimitando as respectivas áreas;
(…) b) a quota diária de exemplares cuja utilização, perseguição, caça ou apanha será permitida.”
Estipula, também, locais e cota para coleta.
A Constituição de 1967 recepcionou a Lei 5.197/1967, porém nada acrescentou para a legislação ambiental vigente na ocasião.
A Constituição de 1988 trouxe algumas novidades em relação à fauna
“Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…) VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Podemos iniciar vários questionamentos sob o ponto de vista biológico, ecológico e econômico. Proteção jurídica pura e simples é genérica. Do ponto de vista ecológico, o animal estaria mais seguro em seu habitat natural, onde exerceria suas funções biológicas originais. Quando a legislação autoriza sua criação em recintos fechados e controlados, o animal estaria exercendo “sua função ecológica” tratado no inciso? Estando em um zoológico ou criador, trancado e em espaço reduzido, não estaria esse ser sendo submetido à crueldade?
O meio ambiente passa ser considerado bem difuso, ou seja, sem titularidade atribuída a ninguém individualmente, nem mesmo ao Estado. Prevê ainda o “manejo ecológico das espécies” – mais uma vez, a meu ver, abrangência genérica.
Em fevereiro de 1989, foi promulgada a Lei nº 7.735, criando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Pesou sobre os ombros da autarquia a regulamentação e fiscalização dos criadores de animais silvestres.
A Instrução Normativa (IN) nº 10 de 2011 definiu e dividiu os CRIADORES em categorias, Física e Jurídica. Os CRIADOUROS, Portaria Ibama nº 118/1997, como área dotada de instalações capazes de possibilitar o manejo, reprodução e criação de animais da fauna silvestre brasileira.
As normativas atuais tratam de vários aspectos técnicos e administrativos. Relatórios anuais e semestrais sobre nascimentos, permutas, marcações, fichamento, parental e óbitos dos espécimes do plantel. Tipos e métodos de pesquisa para os científicos e nascimento e controle da comercialização para os comerciais.
Bem, como disse no início, normativas não surgem do nada. Os representantes eleitos pela sociedade discutem os artigos constitucionais e infraconstitucionais. A hierarquia das leis as leva até seus objetivos. Tais leis, em tese, refletem a vontade e a cultura de uma sociedade. As normas administrativas as regulam. A partir do momento em que autorizamos a criação e procriação desses seres sencientes em cativeiro, seu uso em pesquisas, sua exposição para simples deleite e precificação para obtermos lucros pessoais e empresariais no mercado, deveríamos ter em mente que estamos impondo a eles um sofrimento desnecessário.
Vejo muitas pessoas reclamando de detalhes, muitas vezes relacionados a falhas no sistema de fiscalização. O que os críticos desconsideram é que a falha inicial foi nossa, da sociedade. Órgãos fiscalizadores, com todas as suas dificuldades, ficam com a árdua tarefa de manter um sistema sujeito à interesses humanos muitas vezes escusos. Das “falhas”, surgem, inevitavelmente, ações policiais com os tipos penais que já conhecemos. Uma legislação com penalizações brandas, pouco ajuda a reparar o sistema.
Conhecendo o histórico, verificamos que não só os bens ambientais são difusos, nossa responsabilidade, também.
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