Por Raul Rennó Braga
Biólogo, mestre e doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisador colaborador do Laboratório de Análise e Síntese em Biodiversidade (LASB-UFPR). Atua principalmente com pesquisas relacionadas a ictiologia e a invasões biológicas.
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Há muitas décadas que pesquisadores ao redor do mundo vêm alertando para os problemas ambientais, notavelmente para a grande velocidade em que a biodiversidade está sendo perdida. Obviamente são muitas as formas pelas quais as atividades do homem estão afetando os ecossistemas naturais, mas algumas são muito mais divulgadas que outras. Todos provavelmente já escutaram falar em alterações climáticas, pesca excessiva, desmatamento e poluição.
No entanto, existem muitas outras formas em que as atividades antrópicas (feitas pelos homens) colocam a biodiversidade em risco. Um exemplo é a introdução de espécies exóticas, ação que consiste em transportar uma determinada espécie e introduzir ela em outro ecossistema ao qual ela nunca chegaria sozinha. Em muitos desses casos, ao chegar, essa espécie não encontra predadores naturais além de possivelmente se livrar de competidores e parasitos da sua área nativa. Com isso, podem se tornar abundantes no novo ambiente e prosperar às custas de espécies que são nativas daquele ecossistema. Nesse ponto, são chamadas de espécies exóticas invasoras!
Pois bem, ao apagar das luzes de 2020, o governo federal publicou o Decreto n° 10.576/2020, que facilitou o cultivo de espécies exóticas em reservatórios brasileiros. Assim, essa se tornou mais uma ação que coloca em risco a biodiversidade de água doce em território nacional. Medidas como essa, que visam “afrouxar as rédeas” no combate à introdução de espécies exóticas invasoras, infelizmente não são novas.
Em 2009, o Projeto de Lei n° 5989/2009 propôs tornar nativas por lei algumas espécies de interesse comercial. Dentre as escolhidas estão as carpas e as tilápias, que inclusive são classificadas por especialistas como pertencentes ao seleto grupo das 100 piores, ou mais prejudiciais, espécies exóticas invasoras do mundo. A ideia então é dar o passaporte brasileiro para elas. No entanto, provavelmente esqueceram de avisá-las elas para serem boazinhas com as donas da casa, as nativas.
Fato é que, com a diminuição dos estoques pesqueiros naturais, a pauta de cultivos de peixes vem crescendo bastante nas últimas décadas. Nesse sentido, a aquicultura é sim uma ótima alternativa, porém devemos buscar a forma mais sustentável para colocar tal atividade em prática. Nesse sentido, naturalmente a pergunta a ser feita é: faz sentido o Brasil, sendo o país mais rico em espécies de água doce do planeta, continuar com o cultivo de espécies exóticas ou poderíamos buscar peixes nativos de cada região como alternativa? Essa seria a escolha mais sensata no longo prazo visto que é necessário o desenvolvimento de novas tecnologias para novas espécies. No caso das carpas e tilápias, essas já são cultivadas há séculos!
No curto prazo, a decisão de cultivar espécies exóticas deveria considerar uma “estratégia de guerra” para impedir o escape de peixes para o ambiente. Infelizmente essa não é a preocupação que vemos na prática. Tanques de cultivo são construídos na beira de rios e lagos, fazendo com que em dias de chuva ocorram escapes para o ambiente natural. Pior do que isso, com o Decreto nº 10.576/2020 será possível cultivar tilápias em tanques-rede nos reservatórios brasileiros. Nesses casos, o escape se torna ainda mais fácil. Recentemente a revista Science, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo, publicou uma nota de pesquisadores brasileiros alertando para os efeitos negativos desse novo decreto.
Vamos dar uma atenção especial ao caso da tilápia. A tilápia-do-Nilo (Oreochromis niloticus) é a espécie mais cultivada e consumida no Brasil. Com séculos de seleção artificial e melhoramentos genéticos, a espécie possui uma dieta bastante diversificada, é altamente tolerante às oscilações ambientais e cresce e se reproduz rapidamente. Todas são características importantes para o sucesso do cultivo, no entanto essas são também características que dão a ela uma alta chance de sobrevivência no ambiente natural, além de vantagens sobre as outras espécies nativas.
A literatura científica é vasta em evidências do sucesso da tilápia em ecossistemas naturais e dos impactos que elas causaram ao longo dos anos. Os impactos vão desde causar alterações na dieta de peixes nativos, passando pelo declínio e extinção local de algumas espécies nativas, e vão até alterações no ecossistema como um todo, levando lagos a se tornarem eutrofizados (água com excesso de nutrientes que fazem crescer uma quantidade excessiva de algas e plantas aquáticas). Uma lista de estudos que demonstram o impacto da tilápia-do-Nilo foi publicada pela Sociedade Brasileira de Ictiologia.
Quando avaliamos globalmente a problemática da introdução de espécies, percebemos que em muitos casos as mesmas espécies acabem tendo sucesso em distintas regiões do globo. No entanto, as espécies nativas que eventualmente se tornam extintas são diferentes para cada local. Com isso, a tendência é que ecossistemas, antes muito diferentes, se tornem muito mais parecidos já que as mesmas espécies são introduzidas e as espécies que antes os tornavam diferentes agora não existem mais.
É como se, ao viajar para um novo país, nós não mais encontrássemos bons restaurantes locais de comida típica, mas, em toda esquina, um restaurante McDonald’s. Da mesma forma, talvez as gerações futuras só conheçam tilápias!
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