Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Jesus de Nazaré, o Cristo, o Messias, o Salvador, é tido como o filho querido que Deus enviou à Terra para redimir os humanos. Sendo, na realidade terrena, filho de Maria e do carpinteiro José, Jesus é daquelas personalidades que transcendem sua origem religiosa, sendo conhecido, respeitado e admirado até mesmo entre aqueles que não professam a fé cristã.
Mais até do que um ícone histórico-religioso, Jesus é uma força cultural, a ponto de seu ano de nascimento ter moldado o calendário de grande parte da humanidade e seu dia de nascimento estar fortemente fusionado à celebração do Natal. Como todas as potências da cultura popular, o nascimento de Jesus é fonte de inúmeros causos e lendas para muito além de seu local de vivência, a Palestina, no Oriente Médio, a meio caminho entre o Mar Morto e o Mar Mediterrâneo.
O Natal é um dos maiores feriados cristãos. Em verdade, é um dos maiores festejos de grande parte do planeta, sendo comemorado anualmente no dia 25 de dezembro. Originalmente destinado a celebrar o nascimento anual do deus-sol, no solstício de inverno (no Hemisfério Norte), no século III o Natal foi ressignificado pela igreja católica para estimular a conversão dos povos pagãos, sob o domínio do império romano [1], passando a celebrar o nascimento de Jesus Cristo [2].
Embora seja tradicionalmente um dia santificado cristão, o Natal é comemorado, de modo generalizado, por muitos não cristãos [3][4], até mesmo porque boa parte de seus costumes populares remontam a épocas anteriores a Cristo. Em tempos modernos, os costumes populares típicos do feriado incluem a troca de presentes e cartões, a ceia de Natal, músicas e, mais recentemente, filmes natalinos, as festas de igreja, uma gastronomia diferenciada e a exibição de decorações específicas, como a famosa árvore de Natal, luzes de pisca-pisca, guirlandas, visco e o presépio. Tudo isso, muitas vezes, centrado na mitológica figura do Papai Noel, o bom velhinho de barba branca, roupa vermelha, condutor de um trenó puxado por renas e que leva presentes às crianças. Isso contribui para tornar a data um marco no calendário comercial, tendo o impacto econômico da comemoração gerado um crescimento constante ao longo dos últimos séculos [5].
Presépio é o lugar onde se reúne o gado, ou seja, o curral ou estábulo [6] [7]. Na tradição cristã, difundida por todo o mundo, a montagem de uma representação de presépio carrega grande carga histórica e mística, repleta de simbolismos. Segundo trabalho apresentado por Luci Coelho [6] no IV Colóquio de Zoologia Cultural [8], em 2019, no presépio de Natal as figuras humanas classicamente presentes são o Menino Jesus, sua mãe Maria (a Nossa Senhora), seu pai terreno José e mais os três reis magos (Melquior, Baltazar e Gaspar) que, guiados pela estrela de Belém, foram levar presentes ao recém-nascido. Dentre os animais não-humanos tradicionalmente presentes na cena estão o burro, o boi, a ovelha e uma ave (quase sempre pombo ou galo, podendo ser substituída por um anjo). Na época de Natal, os presépios podem ser vistos em residências, estabelecimentos comerciais e locais públicos, sendo seu tamanho e complexidade dependentes da fé e, principalmente, da situação social de quem o monta.
Tem-se que o primeiro cenário de presépio foi criado por São Francisco de Assis em pessoa, isso em 1223, na Itália, para explicar ao povo mais simples os acontecimentos relacionados ao nascimento de Jesus. A elite europeia, encantada com a representação, passou a encomendar presépios luxuosos, dignos da opulência da família, transformando uma questão de fé pessoal em um símbolo de status e ostentação. Porém, não há como se limitar economicamente uma manifestação de cultura religiosa, possivelmente contrariando as elites, o presépio se tornou popular. Não podendo também ser delimitado em termos geográficos, com a colonização europeia, o costume de se montar presépios no Natal chegou ao Brasil, possivelmente no século XVII, com a fundação do convento de Santa Clara pelos franciscanos, em Taubaté, no Vale do Paraíba do estado de São Paulo [6]. E foi exatamente em São Paulo que os presépios ganharam um acréscimo inusitado…
Embora representem uma tradição quase global, os presépios costumam ser, ainda que parcialmente, adaptados à realidade local, até mesmo com o emprego de elementos da fauna e flora de cada região. Dentro dessa visão, há registros de que nada menos que formigas-tanajura (gênero Atta – Hymenoptera: Formicidae) foram aproveitadas na composição dos personagens de presépios, isso pelo menos até a década de 1960. Segundo o impressionante artigo dos professores Dante Teixeira, Nelson Papavero e Miguel Monné [9], esses “presépios de formigas”, existentes em cidades paulistas como Embu das Artes, podem estar relacionados às “formigas vestidas”, criadas pelo arquiteto francês Jules Martin, dono de uma manufatura paulistana do século XIX.
Voltando aos causos que a cultura popular se associa ao nascimento de Cristo, não é de forma alguma surpreendente que os insetos, o grupo zoológico dominante no planeta, estejam inseridos em alguns. Por seu caráter sagrado, Jesus exerceu, desde o nascimento, um domínio carinhoso sobre os outros animais e demais elementos da natureza. Assim, consta que os insetos, à semelhança do que fizeram outros animais, também foram à gruta de Belém para adorar o recém-nascido especial. Para não assustarem o Menino Jesus, eles ficaram apenas olhando da entrada da gruta. Mas, ao vê-los, a criança sagrada os convidou a entrar, em uma licença poético-religiosa que só as lendas podem se dar ao luxo. Os insetos correram (ou voaram) rapidamente para perto do menino, cada um deles levando um presente. A abelha (Hymenoptera: Apidae) ofereceu o doce mel; a borboleta (Lepidoptera: Rhopalocera), a beleza das cores; a formiga (Hymenoptera: Formicidae), um grão de trigo; a lagarta (provavelmente um bicho-da-seda, Bombyx mori – Lepidoptera: Bombycidae), um fio da mais fina seda. Por sua vez, não sabendo o que oferecer, a vespa (Hymenoptera: Vespidae) prometeu nunca mais ferroar alguém e a mosca (Diptera) se ofereceu para velar o sono de Jesus, mas sem proferir zumbidos desagradáveis.
Apenas um dos insetos não teve coragem de chegar mais perto, pois considerou nada ter a oferecer ao menino – ficando quietinho, tímido, parado na entrada da gruta, mas com uma tremenda vontade de ir lá perto de Jesus para dizer que também o amava. Quando já estava para ir embora, com o coração (que, como em todo inseto, é um tubo dorsal aberto nas extremidades) triste e a cabeça baixa, escutou uma doce voz infantil: “Ei, você aí, pequeno inseto, por que não chega mais perto?”, perguntou Jesus. Comovido, o inseto voou até a manjedoura e pousou na mãozinha do menino. Estava tão emocionado e feliz com a atenção recebida que seus olhos (compostos e multifacetados) encheram de lágrimas. Uma delas deslizou, grossa e brilhante, e foi cair justamente na palma da mão direita do Menino Jesus. “Obrigado” – disse a criança, sorrindo – “É um presente muito bonito”. Naquele momento, um raio de luar iluminou a lágrima. “Pronto! Virou uma gotinha de luz” – disse Jesus. “De hoje em diante vai levar para sempre com você esse raio luminoso. E seu nome vai ser vagalume” [10].
O relato acima traz uma série de estereótipos muito interessantes, sendo que o mais visível deles é a clara separação entre dois grupos. O primeiro inclui os insetos “úteis”, aqueles que fornecem bens concretos para o ser humano (abelha e bicho-da-seda) ou enchem o mundo de beleza colorida (borboleta); a formiga é um caso à parte pois, embora inclua espécies pragas urbanas ou agrícolas de destaque, é um tipo de inseto de tremendo carisma e importância cultural, sendo, talvez por isso, bastante tolerado. O outro grupo inclui os insetos “nocivos”, considerados perigosos tanto pela virulência dolorida da ferroada (vespa), quanto pelo potencial de transmitir doenças (mosca). Mais um ponto legal para se observar: a abelha tem ferroada que provoca dor comparável à da vespa, sendo até mais perigosa. Porém, como a abelha tem destacada importância econômica, a tolerância para com ela é total, ao menos na historinha acima. Eis o bicho-homem, desde sempre se curvando aos interesses econômicos – algo assustadoramente atual nos tempos desta pandemia de Covid-19.
Ainda sobre os insetos que visitaram o Menino Jesus, é curioso perceber que as quatro ordens mais ricas em número de espécies, ditas mega diversas, estão presentes: Coleoptera, a ordem dos besouros, representada pelo vagalume (sim, o vagalume é um besouro da família Lampyridae); Lepidoptera, a ordem das mariposas e borboletas; Hymenoptera, a ordem das abelhas, vespas e formigas; e Diptera, a ordem das moscas. Todos são insetos que possuem ciclo de vida com uma metamorfose completa, incluindo as fases de ovo, larva, pupa e adulto. Há de se destacar também que todos esses insetos mencionados estão muito bem representados na entomofauna brasileira. Abelhas, vespas, formigas, moscas, vagalumes e borboletas são componentes muito diversificados no Brasil. A exceção é o bicho-da-seda, espécie originária da Ásia e que por aqui só é encontrada em criações.
Por fim, os simbolismos da representação dos insetos estão visíveis em praticamente todas as nossas manifestações culturais, inclusive as de cunho religioso. E podem ser muito úteis para se popularizar o grupo, desmistificar crendices, se falar de Ciência como um todo e combater visões antropocêntricas que classificam os outros animais de acordo com sua suposta utilidade. Algo cada vez mais necessário.
Referências
[1] Newton, Isaac, Observations on the Prophecies of Daniel, and the Apocalypse of St. John (1733). Ch. XI. A sun connection is possible because Christians consider Jesus to be the “sun of righteousness” prophesied in Malachi 4:2. In: https://www.gutenberg.org/files/16878/16878-h/16878-h.htm
[2] https://www.newadvent.org/cathen/03724b.htm
[3] https://downloads.bbc.co.uk/worldservice/learningenglish/entertainment/scripts/multifaith_christmas.pdf
[4] https://siouxcityjournal.com/lifestyles/leisure/article_9914761e-ce50-11de-98cf-001cc4c03286.html
[5] https://www.theguardian.com/business/2010/nov/29/christmas-shopping-spree-starts
[6] Coelho, Luci Boa Nova. 2019. Gentileza gera gentileza: o dia em que Nossa Senhora agradeceu a um marsupial. Livro de resumos do IV Colóquio de Zoologia Cultural, p. 86-87. A Bruxa 3(especial): 1-163. In: https://9f1ecf4a-7aa0-44d1-89c9-43f5382c65eb.filesusr.com/ugd/b05672_ac21b446d02245fa9306ac438a0eb676.pdf
[7] https://www.vivadecora.com.br/revista/presepio/
[8] https://www.facebook.com/coloquiozoologiacultural
[9] Teixeira, Dante Martins; Papavero, Nelson & Monné, Miguel Angel. 2008. Insetos em presépios e as “formigas vestidas” de Jules Martin (1832-1906): uma curiosa manufatura paulistana do final do século XIX. Anais do Museu Paulista 16(2): 105-127.
[10] Jardim da Fé: o Menino Jesus e os insetos. In: jardimdafe.blogspot.com/2011/11/o-menino-jesus-e-os-insetos.html#axzz6gBwZlj00
[11] https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Photinus_pyralis_Firefly.jpg
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