Por Thiago Mariani¹ e Kamila Bandeira²
¹Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira
²Bióloga com mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutoranda no mesmo programa, além de pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas estão focadas em Paleontologia de vertebrados
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Mais uma vez a coluna Túnel do Tempo volta a falar sobre o Ubirajara jubatus, o dinossauro peculiar da bacia do Araripe que foi traficado para a Alemanha na década de 1990 (esse dino tem dado muito ‘pano pra manga’, hein?). Recentemente, o governo alemão autorizou a repatriação do espécime para o Brasil, um desfecho feliz que foi fruto do engajamento de paleontólogos brasileiros em conjunto com as autoridades nacionais e alemãs. Uma diplomacia e tanto, que pode servir como precedente para diversos outros casos em que fósseis tenham sido traficados e haja resistência do país detentor.
As leis que regem a saída de fósseis do nosso país já foram apresentadas nesta coluna também e são explícitas em proibir a exportação desse patrimônio, em especial aqueles que servem como holótipos, os indivíduos descritos para dar nome às espécies – como é o caso do ‘Ubirajara’.
Todo o caso expôs as questões éticas e morais relacionadas às legislações sobre o tráfico de fósseis no mundo e no uso de tais fósseis em estudos científicos. Quando nos referimos a ética e moral, não se inclui somente as leis/portarias e o ano em que foram sancionadas. Esses marcos temporais são a fundamentação básica para repatriação de quaisquer fósseis traficados a partir da data em que passaram a viger. Porém, a coisa vai além das leis de cada país e a diplomacia entra para responder à pergunta “qual lei deve ser aplicada?”. E esse é só o começo do esforço necessário para se chegar ao fundo da questão.
O fundo de verdade é a visão colonialista sobre o assunto, como se o Brasil – e a maioria dos países do hemisfério sul – ainda necessitassem se subjugar às necessidades, vontades e leis dos países do hemisfério norte, para onde grande parte dos fósseis é traficada dentro de um mercado autorizado pelas legislações locais. No caso do ‘Ubirajara’, uma vez que o espécime chegou ao Museu de Karlsluhe na década de 1990, as leis alemãs, sejam federais e/ou estaduais, se encarregaram de protegê-lo. Ou seja, o fóssil passou a pertencer ao país e fim de papo. Muito se argumenta sobre a falta de estrutura nos países menos desenvolvidos e que os fósseis não estariam em condições seguras de armazenamento. Acontece que isso não é verdade e há diversas instituições adequadas para o resguardo de fósseis no mundo sulista.
Voltando às questões legais, lembramos que o Decreto-lei nº 4.146/1942 diz que todo fóssil é patrimônio da União. Esse é o marco temporal brasileiro para assegurar seu patrimônio geológico e fossilífero. A pergunta que se surge imediatamente a isso é: e os fósseis que saíram do país antes dessa data? Será que há razões para que sejam repatriados?
Antes de 1942, muitos fósseis foram levados para fora do país, como a coleção Peter Lund, doada por ele para a Dinamarca no século 19, e espécimes coletados por Friedrich von Huene e que hoje estão no museu da Universidade de Tübingen, na Alemanha. E olha que os dois paleontólogos foram muito importantes para a história da Paleontologia brasileira.
E então? Bem, pelo aspecto legal, somente em 1942 os fósseis foram oficializados como bens da nação, logo não haveria artefatos jurídicos que impedissem que saíssem nem que justificassem seu retorno. Entretanto, haveria alguns artefatos jurídicos da Constituição de 1988 que poderiam ser usados em auxílio. O artigo 20, nos incisos IX e X, dispõem sobre os bens da União, sendo que os fósseis podem ser enquadrados como tais, e o artigo 216, incisos II e III do parágrafo 1º, que dispõem sobre a universalização do acesso, o fomento à produção, difusão e circulação de bens e serviços culturais. Teoricamente, os fósseis brasileiros poderiam ser incluídos como bens e serviços culturais para garantir o direito universal ao acesso desses bens, podendo fazer parte da construção cultural e socioeconômica do seu local de origem. Assim, poderia haver uma base legal, ainda que tardia, que argumente em favor da repatriação de fósseis que foram levados para fora do país antes do decreto-lei.
E do aspecto ético/moral? Ah, nesse daí o bicho pega. Os fósseis atraem muita curiosidade e aglutinam muitas pessoas ao seu redor, seja para coletá-lo, estudá-lo ou apresentá-lo ao público. Então, parece claro que traga bastante significado científico e interesse cultural. Como resultado, também trazem significado econômico, uma vez que atraem visitantes, pesquisadores ou turistas, para as regiões onde estão. Quando são muito estudados e geram muitas publicações científicas, os paleontólogos conseguem recursos para o desenvolvimento de seus trabalhos com infraestrutura, financiamento de bolsas para estudantes e atividades de coleta de outros fósseis. Om novos fósseis, por exemplo, podem ser encontrados e reativar o movimento cultural e científico na região.
Como dá para perceber, a região onde os fósseis são coletados se beneficia. Há bastante desenvolvimento ocasionado pela atividade paleontológica. Portanto, há muita coisa em jogo quando esses fósseis saem do país, onde todo esse benefício é capitaneado para o país e a instituição de destino do material, assim como para as pessoas que os estudam.
Dentro desse jogo, cria-se, como resultado, um desequilíbrio científico e financeiro, no qual pesquisadores estrangeiros constroem suas prestigiosas carreiras estudando fósseis não pertencentes ao seu país de origem; enquanto os pesquisadores do país de origem batalham para conseguir dinheiro para viajar para o estrangeiro e poder estudar fósseis que, outrora, deveriam estar no local de onde foram coletados. No ano passado, pesquisadores brasileiros e alemães discutiram esses aspectos de modo bastante simples e a imagem desse artigo foi adaptada para esse texto.
A resposta para a pergunta título não é simples. Em termos legais, não, os fósseis não deveriam ser repatriados. E esse é o fim da história para os processos legais. Agora em termos éticos, sim. Especialmente porque foi demonstrado todos os benefícios que os fósseis podem levar à região onde são encontrados.
Lembro também que a história humana envolve conflitos de poder e dominação sobre outros povos/países e há vários jeitos de exercê-los. O colonialismo foi posto em prática pelos europeus na América e, apesar de a prática ter sido extinta nas relações político-econômicas, o pensamento permanece nas relações científicas e, particularmente, sobre o pertencimento de fósseis. E o passado não deve ser esquecido para se decidir sobre a devolução, por estrangeiros, de artefatos que dizem respeito à história de seu país de origem.
Referências
– Constituição da República
– Correspondência na Nature sobre tráfico de fósseis –
Cisneros et al. 2021. The moral and legal imperative to return illegally exported fossils. Nature Ecology & Evolution.
– Leia outros artigos da coluna TÚNEL DO TEMPO
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