Por Thiago Mariani
Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira.
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Quatro meses atrás, publiquei na coluna Túnel do Tempo um texto sobre as serpentes fósseis do Brasil. Dentre as várias espécies já descritas, a Tetrapodophis amplectus é bastante conhecida por ter sido envolvida em duas polêmicas. A primeira, por ter sido traficada para fora do Brasil e estar em uma coleção particular atualmente. A segunda, porque foi considerada uma serpente com quatro patas, possivelmente terrestre/fossorial, evidenciando etapas de transição na ainda bastante controversa evolução das serpentes.
A evolução das serpentes é controversa porque não há um consenso sobre se o grupo surgiu na água ou na terra; nem qual grupo dos répteis escamados, chamados Squamata, é o mais próximo. A posição da Tetrapodophis amplectus na árvore evolutiva desses répteis também tem variado – e isso importa. No momento de sua descrição, ela foi chamada de serpente, porém, com o passar dos anos, mais estudos foram feitos, mais características foram estudadas e novas interpretações surgiram sobre se ela poderia ser uma serpente mesmo.
Serpente ou mosassauro
Hoje em dia, há duas hipóteses concorrentes sobre esse animal. A primeira é a que a considera uma serpente – não como as serpentes atuais, mas um membro antigo e extinto da linhagem que deu origem às serpentes. A outra hipótese a considera um mosassauro.
Essa controvérsia não passou despercebida por um seguidor antenado do Fauna News e levou a um comentário na postagem do Instagram, questionando a posição da Tetrapodophis como uma serpente. E isso serviu de inspiração para trazer aqui o que os paleontólogos têm encontrado sobre essa espécie. Agradeço, portanto, ao seguidor que me instigou a ir mais a fundo nesse assunto.
Inicialmente, quando foi descrita em 2015, a Tetrapodophis amplectus foi considerada uma serpente terrestre com quatro patas. O fóssil também mostrava um corpo bastante longo, cauda curta e escamas ventrais largas, típicas de serpentes. Os autores também sugeriram um hábito fossorial baseando nas proporções cranianas e em partes das vértebras, chamadas espinhos neurais, que eram reduzidas. Também havia restos de outro vertebrado dentro do corpo do animal, mostrando que era carnívoro. Diante disso, levantaram a ideia de que as patas poderiam ter sido usadas para agarrar as presas. Como conclusão, eles indicaram que as serpentes teriam originado de um ancestral terrestre; e, em função do fóssil ter sido encontrado na América do Sul – assim como outras serpentes basais foram encontradas aqui, na Índia e na África –, o grupo surgiu quando os continentes do sul eram mais próximos entre si, em uma massa de terra chamada Gondwana.
No ano seguinte, houve a primeira contestação dessa hipótese. Outro grupo de pesquisa estudou o fóssil, tirando medidas de seus membros e estudando mais a fundo a sua anatomia. Eles viram que a Tetrapodophis possuía uma mistura de características: as proporções corporais se assemelhavam a de répteis escamados atuais que possuem hábitos fossoriais, mas a anatomia de seus membros era mais parecida com a de répteis escamados marinhos. Eles concluíram que o corpo da espécie era parecido com répteis terrestres fossoriais generalistas e que, se ela fosse terrestre, a semelhança seria com animais que vivem em solos arenosos e soltos ou na serrapilheira; ou seja, não era um animal cavador especializado. Como resultado, a controversa origem das serpentes voltou à tona, já que a Tetrapodophis amplectus possuía um mosaico de características que não apontavam para uma ecologia específica; nem terrestre, nem marinha.
Acontece que existe um grupo de répteis marinhos chamado Mosasauria – que inclui os mosassauros, aquele que aparece no Jurassic World comendo um tubarão – cuja uma de suas linhagens, chamada Dolichosauria, apresenta um plano corporal bastante semelhante ao da Tetrapodophis amplectus: corpo longo e membros curtos. Essa linhagem não é um mosassauro real, mas um grupo de animais marinhos que são parentes dos mosassauros e que viveram nos mares do Cretáceo.
Dada a inconsistência sobre os hábitos da Tetrapodophis, a semelhança corporal dessa espécie com os dolicossauros não passou despercebida, tanto que algumas das comparações anatômicas foram feitas com animais desse grupo. Aqui é importante destacar que eles não sugeriram que a Tetrapodophis fosse um dolicossauro; somente fizeram um contraponto à hipótese vigente e apontaram evidências concretas que o sustentassem, como é praxe nos estudos científicos.
Somente há dois anos, os cientistas mostraram os resultados de uma análise – bastante refinada, com descrições anatômicas não realizadas anteriormente – da Tetrapodophis. Eles mostraram que a espécie não era uma serpente, mas um dolicossauro; que era um animal marinho e que não exibia características antes atribuídas a serpentes, como constricção e macrostomia (boca grande, como as serpentes costumam fazer para engolir suas presas).
Bem, esse não foi o fim da história sobre esse fóssil. Recentemente, em um livro sobre a evolução das serpentes, no qual os cientistas reavaliaram várias questões sobre o assunto, a Tetrapodophis amplectus foi considerada uma serpente. Em alguns de seus capítulos, os autores discutem (1) sobre as características que definem um grupo de répteis escamados chamado Pythonomorpha, no qual reside a hipótese de que as serpentes e os mosassauros são parentes – e na qual a Tetrapodophis é considerada um dolicossauro –, apontando que muitas delas são problemáticas por motivos que variam desde uma preparação incompleta de um fóssil até interpretações erradas de uma feição anatômica. (2) Eles também fazem uma revisão da posição dos mosassauros (e, por tabela, dos dolicossauros), e encontram que Mosasauria é um grupo mais próximo dos lagartos monitores e dragões de Komodo, também chamado de Varanoidea, do que das serpentes.
É importante dizer que nesse último trabalho, os autores conseguiram estudar, comparar e incluir em suas análises mais espécies de mosassauros (não me refiro a descrever espécies desconhecidas, mas simplesmente comparar mais espécies). Isso é importante, pois aumenta o leque de espécies que possuem variações em suas características e podem revelar etapas intermediárias da evolução de algumas feições morfológicas. Assim, eles conseguiram desvendar e compreender como algumas características evoluíram e foram compartilhadas nas linhagens descendentes, concluindo que as características dos mosassauros são mais parecidas com as dos lagartos monitores em vez das serpentes.
Como deu para ver, o bicho é problemático em muitos aspectos. A posição da Tetrapodophis como uma serpente ou como um dolicossauro é importante para revelar momentos e etapas da evolução dos répteis escamados. Além disso, ela mostra algo que já se foi muito discutido sobre a evolução desses répteis: que a evolução deles é bastante complexa porque existe muita convergência evolutiva. Essa última questão é o que dificulta a resolução dessa controvérsia científica.
Referências
– Caldwell et al. 2021. Tetrapodophis amplectus is not a snake re-assessment of the osteology, phylogeny and functional morphology of an Early Cretaceous dolichosaurid lizard. Journal of Systematic Paleontology.
– D.J. Gower & H. Zaher. 2022. The Origin and Early Evolutionary History of Snakes. Cambridge University Press.
– Lee et al. 2016. Aquatic adaptations in the four limbs of the snake-like reptile Tetrapodophis from the Lower Cretaceous of Brazil. Cretaceous Research 66, 194-199.
– Martill et al. 2015. A four-legged snake from the Early Cretaceous of Gondwana. Science 349, 6246.
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