Tenha coragem, assassino! Não se esconda atrás do clima

Os indígenas americanos não pouparam os bisões – eles simplesmente não conseguiram extingui-los. Nossas onças (as duas), antas, capivaras, araras, dentre outras espécies, também não foram poupadas – são apenas as sobreviventes de um massacre mundial que ocorreu nas Américas. Eliminamos os tigres-dente-de-sabre, o urso-gigante, os mamutes, os mastodontes, a preguiça-gigante e inúmeras outras espécies singulares e espetaculares. A devastação foi maior nas Américas, na Europa e nas ilhas, do que na África.

Se hoje ainda podemos ver elefantes, girafas, hipopótamos e outros grandes animais na África, é apenas porque essa megafauna teve tempo para perceber que aquele macaco meio diferente e sem pelos, pouco a pouco deixava de ser presa e se tornava um implacável predador. Os animais de outros continentes foram surpreendidos por um humano, já caçador, munido de paus, lanças e arcos e flechas.

A nossa pré-história é uma história de devastação do mundo animal. Uma pré-história de inexorável extinção. Saímos da África, invadimos a Europa, a Ásia, atravessamos o estreito de Bering e alcançamos as Américas, colonizamos ilhas e, no caminho, matamos e massacramos animais. Não apenas indivíduos; matamos espécies inteiras. Isso se chama extinção. Não existe o “bom selvagem” – nossa espécie extingue outras espécies há milhares de anos.

Compreensão do ponto inicial da humanidade

Não existe o alardeado equilíbrio dos humanos com a natureza, seja de indígenas, de europeus ou das “Novas Europas” (Américas, Austrália, alguns países na África – se repararem, todos colonizados por países europeus – “Novas Europas” -, um conceito interessante trazido no livro Imperialismo Ecológico). As espécies que hoje vemos no Pantanal, na Amazônia, no Cerrado e em outros biomas são simplesmente as que a chegada dos humanos à América do Sul não conseguiu extinguir. E não estou falando apenas dos europeus. Estou me referindo, também, aos que hoje são denominados povos originários. Mas não nos esqueçamos: a origem do ser humano é a África e não as Américas. Os indígenas que ocupavam as Américas (incluindo o Brasil) são “povos anteriores” aos Europeus, mas não originários. O berço, a origem da humanidade é a África.

É preciso essa compreensão histórica ou pré-histórica (considerando a saída da África) para entendermos o que aconteceu no mundo com a dispersão do Homo sapiens. Lanças, porretes, fogo e arco e flechas foram suficientes para eliminar toda a megafauna americana. Você pode ler sobre isso em artigos científicos ou se deliciar com dois elegantes livros de Fernando Fernandez, o Poema Imperfeito e o Mastodonte de Barriga Cheia. O título do segundo, que parece estranho, na verdade, nos dá o contexto para afastar as mudanças climáticas como o assassino dessas espécies. Se o mastodonte morreu de barriga cheia, significa que o clima ainda estava favorável e ele encontrava alimento. Assim, não podemos usar as mudanças climáticas do passado como álibi para os assassinatos que cometemos.

As extinções também foram assincrônicas no tempo e seguiram os passos humanos. Nossos ancestrais chegavam em determinado lugar ou ilha e, depois, a megafauna era extinta. Não adianta, pois não presenciamos o assassinato, mas os vestígios e nosso DNA está em cada cena do crime, em cada continente e ilha onde a extinção ocorreu.

O título do primeiro livro é um soco na nossa cara. O Poema Imperfeito é a natureza de hoje e ela está imperfeita porque nossos antepassados arrancaram com paus, fogo, lança, arco e flechas suas mais magníficas estrofes: as preguiças-gigantes, as aves-elefantes, os lêmures-gigantes, os rinocerontes-lanudos, os mamutes, entre outros. No filme A Era do Gelo existe uma triste passagem em que o mamute relembra a perda de sua família. Massacrada pela espécie cujo filhote (um bebê) naquele momento ele ajudava a proteger. Se os europeus, quando chegaram à África, tivessem sido um pouco mais eficientes, hoje não mais veríamos leões, rinocerontes, elefantes… Até a visão desses magníficos animais nos teria sido negada.

Mas, embora a megafauna tenha resistido na África, a história das grandes navegações não poupou inúmeras outras espécies que haviam sobrevivido à primeira dispersão humana. O dodô (Raphus cucullatus) das ilhas Maurício é o símbolo, mas não a única vítima dessa nova onda de extinção. Foi caçado e comido até a última ave. Assim também ocorreu com o pombo-passageiro (Ectopistes migratorius) nos Estados Unidos da América, com a arara-azul-pequena (Anodorhynchus glaucus) que sucumbiu ao tráfico de fauna no Brasil ou o tilacino (Thylacinus cynocephalus) – lobo-da-tasmânia, na verdade, um marsupial resultante de como a convergência adaptativa trabalha na natureza – que foi exterminado por um programa de caça governamental.

A pré-história do ser humano e a própria história ganham contornos de extermínio em massa. O livro Implacáveis nos apresenta uma boa noção desta destruição, enquanto o Uma história Verde do Mundo nos revolta e dá vergonha da vileza de nossa espécie. A expansão europeia, com suas armas de fogo e ânsia por ocupação de territórios, caça esportiva, peles e penas, provoca uma nova onda de extinção àquela provocada pela primeira dispersão humana. Além das novas armas e armadilhas, junto com o homem vieram os ratos, porcos e cabras, além de outras espécies exóticas que, principalmente nas ilhas, não perdoaram as espécies residentes.

Segunda onda de extinção

Essa segunda onda de extinção é mais bem absorvida pela população que a primeira. É muito caro para nossa sociedade abandonar o mito do bom selvagem. Fazê-lo, nos levaria a entender que somos os devastadores do planeta, sendo necessário, como se disse em Matrix, uma reclassificação de nossa espécie, não mais como mamíferos, mas como vírus. E olha que não são todos os vírus que matam seu hospedeiro.

Ao considerar que o homem já esteve e está (excetuando-se os não-indígenas, por exemplo) em harmonia com a natureza, precisamos olvidar das extinções que nossa própria espécie provocou no passado. Mas essa ideia, apesar de errada, é reconfortante. As extinções e o desequilíbrio com a natureza estariam ligados às grandes navegações ou a uma sociedade industrial. Essa visão manteria a possibilidade de harmonia com a natureza representada pelas populações indígenas, aborígenes e outras. Representaria um alívio: nossa espécie não seria intrinsicamente má. Leda ilusão. Mas é fácil se esquecer das extinções que provocamos. Afinal, essas espécies não estão mais aqui para reivindicar justiça por seu massacre. Também, no imaginário popular, parece que, quando se fala em extinção, se lembra apenas dos dinossauros e, eles já possuem um assassino identificado. O meteoro retira nossa culpa e o tempo geológico nos dá um ótimo álibi – os humanos não existiam naquela época.

Mas, e os mamutes? Eles e as demais espécies da megafauna, em geral, são esquecidos quando se fala de extinção. Mesmo os dodôs, ave-símbolo da extinção, ficam obscurecidos no nevoeiro das grandes navegações. Afinal, não estudamos extinções na escola. Cenas como do filme A Era do Gelo são raras, mas não os filmes de dinossauros. Assim, induzimos as pessoas a vincular a extinção quase que exclusivamente aos dinossauros e não à megafauna que eliminamos. Isso cria a distorção de ressaltarmos mais uma extinção de milhões de anos atrás do que aquela ocorrida há “apenas” milhares de anos. Acrescenta-se a isso a imagem de uma era glacial e pronto, já temos o assassino da última extinção: o clima.

O clima como culpado de tudo

No passado e no presente, o clima é um ótimo álibi ou culpado a ser apontado. O Pantanal não vai acabar em razão de nossas estradas elevadas, mineradoras que atingem o lençol freático, hidroelétricas que retém as águas, retirada de água dos rios para irrigação, diques que impedem o fluxo natural das águas, desmatamentos de cabeceiras de rios e de áreas de preservação permanente.

Não. O Pantanal vai acabar em razão das mudanças climáticas. Quando assim acusamos, conseguimos aplacar a nossa própria culpa e retirar a responsabilidade de nossas mãos. Se a destruição do bioma fosse decorrente de diques, mineradoras, hidroelétricas, estradas elevadas, irrigação e desmatamento, nós poderíamos fazer algo. Deveríamos fazer algo. Mas quando responsabilizamos um fator externo e global, como as mudanças climáticas, aí conseguimos um bom álibi. Uma excelente desculpa para inação.

Se não há o que fazer, você não pode me cobrar por não o fazer. Portanto, se são as mudanças climáticas eu não tenho o que fazer. Nada melhor do que retirar a culpa dessa forma. Nos desobriga a agir. Mas isso é uma mentira, pois o Pantanal está morrendo por ações internas, ações nossas e intrínsecas a ele. Os fatores climáticos podem exacerbar os danos? Certamente. Mas atribuir a eles a responsabilidade é covardia e conveniência, uma injustiça que não acusa o verdadeiro assassino. O clima não foi o vilão do passado e, ainda, não é o assassino do presente. Pode ser um cúmplice, mas não o assassino do Pantanal. Mas ao que parece, o clima nunca deixará de ser alguém bom em quem se colocar a culpa. Não basta gritar inocência; apontar um culpado é muito mais convincente.

E enquanto destruímos, matamos o bioma inteiro do Pantanal, com todas as suas espécies dentro, na Amazônia continuamos a devastação. Nos focamos demais nas taxas de desmatamento e nos esquecemos que, mesmo que a taxa diminua, significa que o desmatamento do ano passado se somou ao atual. Falamos de forma incorreta que o desmatamento diminuiu. Ele nunca diminuiu, ele sempre aumentou. A gente posterga o fim da floresta, mas em nenhum momento interrompemos o processo: madeireiras, seguidas de gado e, finalmente, soja ou outras commodities.

No caminho, os animais são mortos pela ausência de sua casa e, quando sobrevivem, são caçados. As estradas são um dos grandes vetores do desmatamento, assim o foi com a BR-230 (a Transamazônica), a BR-163 (Cuiabá/MT-Santarém/PA) e pretende sê-lo com o asfaltamento da BR-319 (Porto Velho/RO-Manaus/AM). O asfaltamento desta estrada será a bala de prata no último maciço florestal amazônico. Mas é preciso conectar Manaus a Porto Velho por uma saída terrestre. É? Então não existem locais no mundo e pessoas vivendo em ilhas? Preciso não é. Mas existe este interesse? Sim, ele existe e poderia ser suprido por ferrovia. Aliás, uma ferrovia poderia ser um desenvolvimento sem devastação. Ela conectaria Manaus a Porto Velho e alavancaria o turismo na região. Quantas pessoas não pagariam por uma viagem confortável de trem saindo de Porto Velho até Manaus enquanto cruzam a exuberante floresta amazônica? Em Manaus, ainda há o encontro das águas e outras atrações turísticas. Uma solução mais sustentável que o asfaltamento existe, basta a vontade política de implantá-la.

Mas a devastação da floresta não se limita à sua derrubada. Não se traduz apenas na conversão de árvores em capim, em pasto. Além da devastação da floresta, existe uma destruição mais silenciosa e menos perceptível. A floresta ainda estará lá, só que transformamos o que resta em uma “floresta vazia“. Aliás esse é o título de uma pesquisa, um clássico, conduzida por Kent Redford em 1992. Ele demonstrou que, mesmo a caça de subsistência (que é proibida no Brasil) tem o poder de extinguir localmente ou ecologicamente as espécies caçadas. A extinção ecológica ocorre quando a densidade da espécie se torna tão baixa que não lhe permite desempenhar sua função ecológica.

Aqui, é importante lembrar que a Constituição Federal, em seu artigo 225, veda as práticas que comprometam ou seja, que coloquem em risco a função ecológica das espécies. No entanto, assim como admitir que o homem foi responsável pela extinção da megafauna, mesmo que contra todas as evidências práticas e científicas, nos é caro demais admitir que populações ribeirinhas e indígenas possam, por caça, tornar uma floresta, vazia. Admitir tal coisa colocaria em xeque toda a premissa de unidades de conservação de uso sustentável, além da imagem dos indígenas em perfeita harmonia com a natureza. Óbvio que uma unidade de conservação de uso sustentável (onde pessoas moram dentro) ou terras indígenas, quando comparadas à pecuária ou produção agrícola intensiva de monocultura, garantem uma maior biodiversidade às áreas onde se encontram as populações tradicionais ou as indígenas. Mas temos de ter coragem de admitir que, se quisermos realmente proteger a biodiversidade, o homem tem que estar fora. Não vivemos em harmonia com a natureza, sejam as pessoas da cidade, do campo, as ribeirinhas ou os indígenas.

Humanos x natureza

Nós exploramos a natureza, a dominamos, a subjugamos e a destruímos em maior ou menor escala de acordo com as atividades e instrumentos disponíveis. Admitir ser um alcoólatra é o primeiro passo. Sem isso, não existe a possibilidade de cura ou redenção. Mas admitir isso, que humanos não convivem em harmonia com a natureza, seria priorizar as unidades de conservação integrais, ou seja, sem a presença humana. Isso implica em uma mudança de política e, na prática, enfrentar o que fazer com áreas de importante relevância ecológica, mas ocupadas por pessoas. Considerar que algumas populações humanas convivem em harmonia com os animais e meio ambiente torna tudo mais fácil. Proteger essas populações, criando reservas extrativistas ou demarcando terras indígenas também é proteger a biodiversidade. Mais fácil, sim. Verdade? Não. Estabelecer unidades de conservação de uso sustentável é melhor do que a converter as terras em áreas de pasto ou agrícolas, mas atende mais aos anseios das populações ali residentes do que da biodiversidade.

Da mesma forma, ao não enxergar o impacto da caça de subsistência, possibilita-se repassar à biodiversidade a responsabilidade da segurança alimentar da população ribeirinha, dos seringueiros e outras. É mais fácil defender a caça de subsistência e, dizer com isso, que se está defendendo a cultura e o direito daquelas pessoas do que realmente buscar soluções para a insegurança alimentar em que eles vivem. Não existe segurança alimentar se sua alimentação é baseada na caça e em farinha de mandioca – isso é uma falácia.

A alternativa necessária ao meio ambiente e, socialmente justa, seria um programa sério de extensão rural que promovesse e disseminasse técnicas de cultivo de horta, pomares e até mesmo de pequena criação de forma que aquelas pessoas tivessem ovos, por exemplo, à disposição e não ficassem eternas dependentes de farinha e carne de caça. Mas instituir um programa desse seria admitir o impacto da caça sobre a biodiversidade e também considerar que unidades de conservação de uso sustentável não substituem as de proteção integral. Seria colocar em xeque um outro caro conceito: o socioambiental.

É incrível como é difícil se defender as florestas ou os animais por si mesmos. A defesa se inicia na biodiversidade, mas de alguma forma ela permeia ou caminha para o interesse humano. Afinal, o direito é antropocentrista e nós também o somos, à medida que somos humanos. Mas o verdadeiro altruísmo está em defender o ambiente, pelo próprio ambiente. Uma espécie é importante em decorrência de sua existência e não naquilo que ela me pode ser útil. Assim deveria ser, mas não é. Então o socioambiental ocupa mais espaço que o ambiental. Afinal existem dois grandes apelos: um é o benefício para o próprio homem e o outro é a ilusão de que estaríamos em harmonia com a natureza. Uma ilusão, uma tentadora ilusão.

Partindo desse princípio, defender ou proteger unidades de conservação de uso sustentável (como reservas extrativistas) ou terras indígenas seria o mesmo que defender a floresta e os animais. Não é. Os animais que temos hoje nas terras indígenas são os que sobreviveram ao ingresso da espécie humana nas Américas. Sobreviveram a uma pressão de caça com paus, fogo, lança, arco e flechas. Espingardas são um novo componente nessa interação, mas um componente agora presente em terras indígenas. E não significa que as espécies que sobreviveram antes continuarão a subsistir, pois provavelmente não conseguirão. Espingardas são mais eficientes que arco e flechas – simples assim.

Reconhecer a importância das terras indígenas para a manutenção de sua cultura e até para a proteção das florestas não pode ser um obstáculo ao debate sobre sua real contribuição à biodiversidade e aos riscos que a introdução de armas de fogo representa para os animais. Precisamos enfrentar essas questões e essas discussões antes que nossas florestas se tornem vazias. Precisamos parar de nos esconder atrás das mudanças climáticas e assumirmos nossos erros e responsabilidades.

O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.

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