Por Cláudia Xavier
Bióloga, mestra em Zoologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e doutoranda em Zoologia (UFPA/MPEG). Trabalha no Laboratório de Aracnologia do Museu Emílio Goeldi
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A taxonomia é a ciência que classifica hierarquicamente e dá nome aos seres vivos, sendo absolutamente necessária para o nosso entendimento da árvore da vida, pois sem nomear adequadamente os organismos torna-se inviável estudá-los. O naturalista sueco Carl von Linné (o famoso Lineu) é considerado o pai da taxonomia moderna devido à sua famosa publicação do Systema Naturae, em 1758, em que propôs o sistema binomial de nomenclatura usado até os dias de hoje. De maneira sucinta, nesse sistema cada organismo recebe um nome formado por duas palavras em latim: a primeira palavra refere-se ao gênero e a segunda refere-se ao epíteto específico da espécie em si.
Entretanto, em 1757 seu conterrâneo Carl Alexander Clerck publicou um trabalho intitulado Svenska Spindlar (Aranhas Suecas), no qual catalogou e ilustrou diversas aranhas utilizando também um sistema binomial de nomenclatura em latim. Portanto, a taxonomia de aranhas tem seu início antes mesmo do padrão que é estabelecido atualmente para todos os outros animais.
De maneira geral, o nome atribuído pode fazer referência a alguma característica morfológica daqueles animais ou ao lugar em que são/foram encontrados e por aí vai. A etapa de atribuir um nome a uma espécie nova, considero a parte mais lúdica do trabalho taxonômico, pois é quando se permite que a criatividade aflore. Vou dar alguns exemplos ao longo do artigo.
Várias espécies do gênero Ianduba, descrito pelo pesquisador Alexandre Bonaldo, em 1997, tem sua ocorrência no estado da Bahia. O nome é uma combinação da palavra iandú (aranha em Tupi) e as duas primeiras letras de Bahia. O gênero tem algumas espécies nomeadas em referência a algumas comidas típicas da região como Ianduba acaraje, Ianduba mugunza e Ianduba vatapá. Outra espécie desse gênero com nome bastante interessante é a Ianduba dabadu, que faz referência à expressão falada pelo Fred Flinstone da animação Os Flinstones (yabba dabba doooo!).
Ainda sobre culinária baiana, temos as aranhas do gênero Celaetycheus descritas pelos pesquisadores Danielle Polotow e Antonio Brescovit: Celaetycheus beiju, Celaetycheus caruru, Celaetycheus muqueca, Celaetycheus bobo, Celaetycheus abara, Celaetycheus aberem, entre outros (já deu fome aí também?).
Através da taxonomia é possível resgatar também, não só a cultura culinária das localidades de origem das espécies, mas a cultura folclórica, como fizeram os pesquisadores Cristina Rheims e Antônio Brescovit, do Instituto Butantan, ao descreverem diversas espécies da região amazônica para o gênero Scytodes: Scytodes iara, Scytodes mapinguari, Scytodes saci, Scytodes caipora, Scytodes curupira, Scytodes jurupari e por aí vai.
Acredito que você que está lendo esse texto conheça o famoso personagem de ficção criado por Carlo Collodi, no século XIX, chamado Pinóquio. Pois bem, ele também recebeu sua homenagem pelos pesquisadores Bernard Huber e Leonardo Carvalho, que descreveram em 2019 a espécie Pinocchio barauna. Isso porque os machos dessa espécie de aranha possuem uma projeção bem grande próxima aos olhos que lembra o nariz avantajado do personagem. Ainda não se sabe qual a função dessa projeção tão grande. Será que também mentiu demais?
É bastante recorrente também a prática de homenagear cientistas importantes para a araneologia, de modo que essas pessoas sejam lembradas por bastante tempo. Em 2020, descrevi e nomeei a espécie Camillina bonaldoi em homenagem ao aracnólogo Alexandre Bonaldo, do Museu Paraense Emílio Goeldi. No corrente ano de 2021, descrevi e nomeei (dessa vez junto com o Dr. Bonaldo) a Tupirinna regiae, em homenagem a aracnóloga Dra. Regiane Saturnino, e a Tupirinna platnicki, em homenagem ao Dr. Norman Platnick, conhecido como o “verdadeiro homem-aranha” por suas enormes contribuições ao conhecimento desse grupo animal tão especial.
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Certamente a cultura pop não ficaria de fora e encontramos nomes bem interessantes para algumas espécies de aranhas. As minúsculas aranhas do gênero Predatoroonops Brescovit, Rheims & Ott, 2012 receberam esse nome por apresentarem projeções nas peças bucais que lembram a boca do Predador, personagem dos filmes de mesmo nome. Além disso, as espécies descritas para esse gênero também homenageiam personagens, atores e lugares desse clássico da ficção científica, como Predatoroonops schwarzeneggeri, Predatoroonops anna, Predatoroonops poncho, Predatoroonops billy, Predatoroonops dutch e Predatoroonops yautja.
Em 2018, sete novas espécies de aranhas do gênero Ochyrocera descobertas em cavernas no estado do Pará foram descritas por Antônio Brescovit, Igor Cizauskas e Leandro Mota, do Instituto Butantan, homenageiam alguns personagens aracnídeos de famosas obras da ficção. No trabalho dos autores, encontramos Ochyrocera aragogue (homenagem a Aragog, personagem da série de livros Harry Potter); Ochyrocera laracna e Ochyrocera ungoliant (homenagem às aranhas gigantes Laracna e Ungoliant, do universo de Senhor dos Anéis); Ochyrocera varys (homenagem a Varys – o Aranha – da série de livros de George R. R. Martin que inspirou a série de televisão Game of Thrones); Ochyrocera atlachnacha (faz referência a Atlach-Nacha, a deusa-aranha que aparece em O chamado de Cthulhu, criado por H. P. Lovecraft) e Ochyrocera charlotte (homenagem a aranha Charlotte, amiga do porquinho Wilbur de A menina e o Porquinho – Charlotte’s Web, no original).
Espécies do gênero Epicratinus, descritas por Brescovit e Gonçalves em 2020, homenageiam diversos personagens da cultura geek como Epicratinus anakin, Epicratinus dookan e Epicratinus vader, que fazem referência a personagens da saga Star Wars, e ainda Epicratinus pikachu (Pokémon), Epicratinus stitch (Lilo e Stitch), Epicratinus pegasus (Cavaleiros do Zodíaco) e Epicratinus zelda.
Para finalizar esse compilado, eu não poderia deixar música de fora. Afinal, aracnólogos adoram um bom rock’n’roll. Em 2015, os pesquisadores Alexandre Bonaldo, Laura Miglio e Fernando Pérez-Miles descreveram a aranha amazônica Bumba lennoni, que homenageia o ex-beatle John Lennon além da tradição do Boi-bumbá brasileiro. Em 2008, Heteropoda davidbowie foi descrita e assim nomeada por Peter Jäger em homenagem ao cantor David Bowie. Em 2019, a pesquisadora Christina Rheims, do Butantan, descreveu e batizou quatro espécies brasileiras em homenagem a grandes astros do rock. São elas: Extraordinarius andrematosi (homenagem a André Matos, ex-vocalista das bandas Angra, Viper e Shaman); Extraordinarius brucedickinsoni (homenagem a Bruce Dickinson, vocalista do Iron Maiden); Extraordinarius klausmeinei (homenagem a Klaus Meine, vocalista do Scorpions) e Extraordinarius rickalleni (homenagem a Rick Allen, baterista do Def Leppard).
Nomear espécies dessa forma mais lúdica, aproximando o público não-especialista das publicações científicas, pode ser uma vantagem para valorização da Taxonomia, visto que, hoje, o financiamento para descoberta e descrição de novas espécies vem caindo continuamente. Isso se torna um problema gigantesco para um país como o nosso, com dimensões continentais e muito ainda por se descobrir acerca da sua biodiversidade. Existem ainda diversos outros nomes de aranhas tão interessantes quanto esses que podem ser encontrados no Catálogo Mundial de Aranhas.
Referências
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– Gonçalves, R. A. & Brescovit, A. D. (2020). Taxonomic review and cladistic analysis of Neotropical spider genus Epicratinus Jocqué & Baert, 2005 (Araneae: Zodariidae) with description of eleven new species. Zootaxa 4886(1): 1-77. doi:10.11646/zootaxa.4886.1.1
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– Rheims, C. A. & Brescovit, A. D. (2004d). On the Amazonian species of the genus Scytodes Latreille (Arachnida, Araneae, Scytodidae). Revista Brasileira de Zoologia 21: 525-533.
– Rheims, C. A. (2019b). Extraordinarius gen. nov., a new genus of Sparianthinae spiders (Araneae: Sparassidae) from southeastern Brazil. Zootaxa 4674(1): 83-99. doi:10.11646/zootaxa.4674.1.4
– Xavier, C. & Bonaldo, A. B. (2021). Taxonomic revision of the genus Tupirinna Bonaldo, 2000 (Araneae: Corinnidae: Corinninae). Zootaxa 5004(2): 201-250. doi:10.11646/zootaxa.5004.2.1
– Xavier, C., Ott, R. & Saturnino, R. (2020). Three new species of Camillina Berland, 1919 (Araneae: Gnaphosidae) from Brazil. Zootaxa 4802(3): 502-518. doi:10.11646/zootaxa.4802.3.6
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