Por Thiago Mariani
Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira.
tuneldotempo@faunanews.com.br
Fala, moçada! Me chamo Thiago Mariani (algumas pessoas me chamam de Aspira) e a partir de hoje começarei a dividir a coluna Túnel do Tempo com a Kamila Bandeira. Se passou pela sua cabeça que agora serão dois textos por mês, então você acertou! Serão DOIS textos por mês na coluna, publicados quinzenalmente.
Para estrear na coluna, abordarei um assunto delicado que tem permeado a Paleontologia brasileira, especificamente sobre um sítio fossilífero bastante relevante para o país: o sítio de Pirapozinho, também conhecido como Tartaruguito. Então segura firme aí!
Quando o assunto é Paleontologia, o Brasil costuma estar presente nas discussões. Não à toa, o país possui sítios fossilíferos com grande importância mundial para o estudo de vários grupos de seres vivos. Lugares como o Rio Grande do Sul, onde se encontraram os dinossauros mais antigos e outros animais como o Pampaphoneus e o Microsphenodon, do período Triássico; a bacia do Araripe, na região Nordeste, do período Cretáceo, em que fósseis de diversos seres vivos costumam ser encontrados com excelente grau de preservação (muitas vezes completos e totalmente articulados!), com destaque para a diversidade de pterossauros; e a bacia do Acre, com fósseis de espécies gigantes como o crocodilo Purusaurus e a tartaruga Stupendemys.
Mas para além desses locais, uma região algumas vezes tema desta coluna também merece destaque: o oeste paulista. Nessa região encontra-se o sítio de Pirapozinho ou Tartaruguito, bem próximo a cidade de Presidente Prudente, que merece atenção pela quantidade de fósseis de tartarugas encontrados, frequentemente amontoados uns sobre os outros. Nesse local são encontradas as tartarugas Bauruemys elegans e Roxochelys wanderleyi e é um dos poucos locais do mundo com registro de um grupo de tartarugas conhecido como Pelomedusoides e que data do final do Cretáceo. No sítio também foi encontrado o crocodilo Pepesuchus.
O nome informal Tartaruguito significa, literalmente, tartaruga na rocha (junção de tartaruga + ito, um sufixo que, na Geologia, faz menção a rochas), por causa da grande quantidade de tartarugas encontradas. Na década de 50 do século passado, o sítio foi um local por onde passava a estrada de ferro Sorocabana, que levaria até o município de Dourados, no Mato Grosso do Sul. O corte realizado para a passagem dos trilhos expôs camadas de rocha do período Cretáceo, de aproximadamente 66 milhões de anos, e permitiu a descrição da espécie Bauruemys elegans na década de 1960, pelo professor José Martin Suárez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente.
Muitos anos após as primeiras pesquisas do professor Pêpe, como Suárez era chamado, a ferrovia foi desativada e restou somente o corte feito para a implementação da estrada de ferro. Assim começaram, no fim da década de 1990 e início dos anos 2000, as coletas de pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro, comumente apoiadas pelo professor. Tais atividades se tornaram sistemáticas, quase que anualmente, levando a um grande aporte de espécimes coletados no local e depositados na coleção de Paleontologia do Museu Nacional. Nos anos seguintes, pesquisadores e alunos da Universidade Federal de Viçosa também participaram das expedições e coletaram fósseis para essa instituição, aumentando a representatividade de materiais do sítio em outras coleções do Brasil. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (São Paulo e Ribeirão Preto) também visitaram e coletaram tartarugas no sítio, assim como pesquisadores da Unesp de Rio Claro.
Em outras palavras, o local é bastante valorizado pela produção científica e paleontológica. Também já foi sugerido a abertura de um museu a céu aberto ali devido à grande quantidade de tartarugas e à qualidade da preservação desses esqueletos, o que poderia aumentar a atividade turística para as cidades de Pirapozinho e Presidente Prudente. Muito além da importância econômica, está a valorização do patrimônio fossilífero brasileiro e toda a sua potencialidade científica, turística e, principalmente, educacional. Sabemos que, para valorizar nossos recursos, é necessário mostrar para a população o quanto são valiosos e influenciam a imaginação das pessoas, particularmente a das crianças.
E é nesse sentido que chego ao assunto delicado: a área do sítio de Pirapozinho está sob a mira de loteamento residencial. É isso mesmo, o sítio seria destruído para a construção de prédios residenciais ou casas. Uma curiosidade sobre isso é que muitos foram pegos de surpresa por essa situação, sendo informados somente por uma carta enviada pela Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP). Nem uma notícia nos jornais locais foi publicada sobre o assunto. Tal carta foi direcionada ao prefeito de Pirapozinho e expõe preocupação sobre a preservação do sítio, destacando, ainda, a relevância do local para a Paleontologia. Além da enorme quantidade de fósseis de tartarugas, também já foram encontrados ovos fossilizados, elementos muito difíceis de serem preservados.
É sempre bom lembrar que fósseis são patrimônio da União desde 1942, a partir do Decreto-lei nº 4.146/1942, como já destacado na coluna anteriormente. Sendo assim, cabe aos órgãos públicos preservarem seu patrimônio. O sítio Tartaruguito também foi reconhecido pelo SIGEP (Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológios), uma comissão criada pelo antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), hoje Agência Nacional de Mineração (ANM). Para que haja tal reconhecimento há uma série de fatores que devem ser considerados, como singularidade, qualidade de preservação, importância e, destaco, “existência de mecanismos ou possibilidade de criação de mecanismos que lhe assegure a conservação”. Logo, para o Tartaruguito merecer esse reconhecimento, o sítio precisou cumprir com todas essas exigências, o que deve ter ainda mais peso para ser valorizado pelos órgãos públicos e garantir a preservação do local e seus fósseis.
Descobrimos hoje, neste artigo, o que é o Tartaruguito e sua importância para a Paleontologia e a história da Terra, do Brasil e da América do Sul, a pesquisa científica e a formação de recursos humanos (os alunos que fazem pesquisa sobre o sítio) e o potencial turístico como um museu a céu aberto – isto é, o quanto os fósseis engajam a imaginação das pessoas. Também descobrimos que o sítio está sob ameaça de destruição para empreendimento imobiliário e que a preservação do local deve ser garantida pelo poder público, sempre que possível com apoio popular.
Essa reflexão é importante para que outros sítios possam ser conservados também: sempre há uma alternativa para se preservar a história da Terra, como o próprio SIGEP elencou como um de seus critérios. E para o Tartaruguito não me parece diferente, pois há como tirar essa ameaça sobre o sítio. Se isso irá adiante, o futuro nos aguarda.
Para saber mais
– Suárez,J.M. 2002. Sítio Fossilífero de Pirapozinho, SP – Extraordinário depósito de quelônios do Cretáceo. In: Schobbenhaus,C.; Campos,D.A. ; Queiroz,E.T.; Winge,M.; Berbert-Born,M.L.C. (Edits.) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. 1. ed. Brasilia: DNPM/CPRM – Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP), 2002. v. 01: 49-54.
– Carta da Sociedade Brasileira de Paleontologia sobre o Tartaruguito
– Critérios do SIGEP para inclusão de sítios paleontológicos.
– Oliveira, GR, Romano, PSR. 2007. Histórico dos achados de tartarugas fósseis do Brasil. Arquivos do Museu Nacional, 65 (1): 113-133.
– Leia outros artigos da coluna TÚNEL DO TEMPO
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)