Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Um preâmbulo
Há pouco mais de um mês planejei o tema deste texto. Aproveitando que em junho o maior campeonato de futebol no Brasil, o Brasileiro da série A, já estaria em realização, aliado ao fato de estarem programadas a Copa América e a EuroCopa, a ideia seria mostrar que dá para se falar de insetos usando o mais popular esporte do planeta como pano de fundo.
Algo prazeroso para mim, um entomólogo aficionado por futebol, apaixonado pelo Flamengo e que tem em Zico (e não Darwin) o ídolo maior da vida. Porém, confesso que pensei muito em desistir do tema. Isso por obra e (des)graça do uso da Copa América para corroborar um projeto perverso que custou a vida de meio milhão de brasileiros, em números notoriamente subamostrados, vítimas de uma doença para a qual já há vacinas há mais de seis meses.
Sim, considero absurda a realização da Copa América no Brasil ou em qualquer outro lugar que não consiga minimamente controlar a pandemia de Covid-19. Mas, após muita reflexão, decidi seguir com o planejado e manter o tema do artigo. Se eu desistisse, eles venceriam.
O futebol é o esporte mais popular do planeta, podendo ser considerado um dos principais fenômenos socioculturais dos séculos 20 e 21. Esporte globalizado e de massa, capaz de mobilizar bilhões de pessoas nos cinco continentes, independentemente de etnia, credo, educação e classe social, o futebol influencia diversos segmentos da sociedade moderna, como economia, política, religião, cultura [1] e até… Ciência! No campo da Zoologia Cultural, que investiga a presença simbólica dos animais nas mais distintas manifestações da cultura, bem como suas incontáveis possibilidades de utilização [2] [3], já há um elenco interessante de trabalhos que abordam o simbolismo animal no velho esporte bretão.
A relação do futebol com os animais é antiga, sendo esses presentes nos escudos, como mascotes de clubes e seleções [4] [5] [6] [7], em expressões futebolísticas [8] e até mesmo nos nomes e apelidos dos jogadores. Além, é claro, da própria presença física de bichos dentro das quatro linhas, especialmente aves, cães, gatos e ratos, algumas vezes com desdobramentos satíricos e folclóricos.
Vale ressaltar que esta coluna já mencionou alguns casos de entomólogos que nomearam espécies novas em homenagem a personalidades do futebol, caso das espécies de Neotrichia (ordem Trichoptera) dedicadas aos onze brasileiros que disputaram a partida final da Copa do Mundo de 1958, além do técnico da seleção brasileira, bem como da abelha que homenageia o número usado por Ronaldinho Gaúcho durante sua passagem pelo Atlético Mineiro, de Belo Horizonte (MG) [9]. O mesmo autor dessa última homenagem já havia descrito outra abelha, Eulaema atleticana, em honra de seu clube do coração [10].
Curiosamente, são poucos os clubes que utilizam insetos em sua simbologia. Uma interessante exceção é o Argentino Juniores, da Argentina, primeiro clube profissional da carreira do saudoso craque Diego Maradona e que tem a joaninha (ordem Coleoptera) como mascote [1]. Dentro dessa abordagem, merece destaque absoluto o trabalho desenvolvido pelo biólogo Leandro Dumas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que, já há alguns anos, vem se dedicando ao estudo da presença simbólica dos animais nos clubes e seleções de futebol. Além de artigos já publicados [1] [5] [6], Ele está elaborando um livro sobre o tema, relativo ao futebol brasileiro.
Em palestra proferida durante o I Colóquio de Zoologia Cultural [11], Lenadro menciona que, obviamente, a mascote do clube Formiga, sediado na cidade mineira de Formiga, só poderia mesmo ser uma… Formiga! Ainda dentre os mascotes entomológicos, um besouro (ordem Coleoptera) foi adotado pelo Juventus, de Seara (SC), enquanto abelhas (ordem Hymenoptera) representam o Grêmio Barueri, de Barueri (SP), o Picos, de Picos (PI), o São Luiz, de Ijuí (RS), e o Bagé, de Bagé (RS).
Da mesma forma, também os insetos reais são presença rara no mundo do futebol. Na verdade, insetos não são raros no futebol, mas talvez sejam pouco notados. Certamente aqueles que assistem jogos à noite, especialmente nas épocas mais quentes, já devem ter se deparado com transmissões pela TV que mostram mariposas (ordem Lepidoptera) e, principalmente, cupins (ordem Blattodea) atraídos pela luz dos refletores – esses últimos quase sempre chamados pelos narradores como “bichinhos de luz”. Isso é tão corriqueiro que nem desperta a atenção do telespectador.
Mas, às vezes, os insetos roubam a cena nos gramados dos estádios de futebol. Como na Copa do Mundo de 2014, em que James Rodríguez, o camisa 10 e grande destaque da Colômbia, ganhou o apoio de um grande e bonito gafanhoto (ordem Orthoptera) enquanto comemorava o gol de pênalti que acabara de marcar contra o Brasil [12], seleção dona da casa. O gafanhoto, aparentemente, não deu tanta sorte assim para a seleção de James, derrotada por 2 a 1 pelo escrete canarinho. Pensando bem, talvez o inseto tenha dado azar não para os colombianos, mas sim para os brasileiros – basta lembrar o que nos aconteceu no jogo seguinte, quando defrontamos a Alemanha e sofremos a impiedosa e humilhante goleada de 7 a 1.
Também na Copa de 2014, de triste memória para os brasileiros, durante a partida Costa do Marfim 2×1 Japão, um zagueiro marfinense retirou, gentilmente, uma mariposa da família Sphingidae do campo de jogo, fato que eu explorei, em 14 de junho de 2014, como recurso didático no grupo de Facebook de uma das disciplinas que ministro no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Mudando de torneio e de continente, o craque português Cristiano Ronaldo, um dos principais futebolistas da atualidade, recebeu o acalento de uma mariposa enquanto chorava no gramado, por se contundir e ter que deixar precocemente o campo durante a final da EuroCopa de 2016, entre Portugal e França [13]. A cena ganhou o mundo e, naturalmente, fomentou a indústria dos memes [14]. Ao contrário das borboletas, as mariposas costumam ser consideradas como símbolos de azar, o que já foi abordado nesta coluna [15]. Mas, curiosamente, a amiga alada de CR7, identificada como pertencendo à espécie Autographa gamma (família Noctuidae) [16], deu sorte à seleção do craque: Portugal venceu por 1 a 0 e conquistou o campeonato.
Os insetos são bastante democráticos no que se refere à sua ligação com o futebol, não só agraciando as grandes estrelas mundiais, mas também os nossos artistas locais. Por exemplo, em resenhas entomológico-futebolísticas com os biólogos Eduardo Calil (Prefeitura de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro) e Daniel Salomão (Universidade do Grande Rio, em Itaboraí, também no Rio de Janeiro), realizadas em 2019 (ou seja, ainda no mundo anterior à pandemia de Covid-19), elencamos alguns casos interessantes em nossos gramados tupiniquins. Como o da mariposa, claramente da família Sphingidae, que pousou na perna de um dos árbitros do jogo entre Sinop (MT) e Corinthians (SP), durante a edição de 2019 da Copa São Paulo de Futebol Júnior, fato enfatizado na transmissão da TV [17]. Só para informar, a equipe paulista venceu o jogo por 4×1.
Ou na batalha entre um quero-quero (Vanellus chilensis), ave da ordem Charadriiformes comumente observada em campos de futebol, e uma mariposa, também da família Sphingidae. O embate foi narrado durante a transmissão da partida Palmeiras 2×1 Linense, do campeonato paulista de 2013. A mariposa acabou predada pela ave – nas palavras do narrador Milton Leite, “Que fase da mariposa…” [18]. Fato esse que pode levar à uma discussão interessante. Como muitos insetos são atraídos por luzes artificiais, os estádios de futebol, muitos deles em áreas abertas e afastadas, se constituem em verdadeiras armadilhas luminosas. Isso traz consequências danosas para os próprios ciclos biológicos dos insetos, bem como para as intrincadas redes naturais das quais eles participam.
O grande rival de Cristiano Ronaldo nas disputas pela Bola de Ouro, troféu anual conferido ao melhor jogador a cada temporada, o argentino Lionel Messi também tem uma ligação inusitada com o mundo dos insetos. Por ter tido, quando jovem, problemas de crescimento, o craque do Barcelona recebeu o apelido de “La Pulga” [1], alusivo aos pequenos insetos da ordem Siphonaptera. E, assim, adentramos à curiosa seara dos jogadores de futebol com apelidos relativos a nomes de insetos, quase sempre representantes de grupos comuns, como as abelhas, formigas (ordem Hymenoptera), moscas e mosquitos (ordem Diptera).
No Brasil, dentre os jogadores masculinos com nome de inseto, talvez o de maior destaque futebolístico tenha sido o goleiro Abelha, que começou a carreira na Ferroviária, de Araraquara (SP), e ganhou títulos por Flamengo, do Rio de Janeiro (RJ), e São Paulo, de São Paulo (SP). O meia Mosca, revelado pelo Nacional, de Itumbiara (GO), teve passagem de pouco destaque pelo Corinthians, de São Paulo (SP), clube onde atualmente joga o atacante Gustavo Silva, o Mosquito, que foi revelado pelo Coritiba, de Curitiba (PR). Mosquito é também o apelido de um atacante surgido no Vasco da Gama, do Rio de Janeiro (RJ), e que atualmente joga no Club Deportivo Maldonado, do Uruguai.
Formiguinha é um apelido comumente dado a jogadores [8] que quase sempre ocupam a faixa central do gramado e se caracterizam por um trabalho incessante, com muito esforço e dedicação. Dois canhotos de grande habilidade no trato com a bola talvez sejam os maiores representantes: Dirceu, revelado pelo Coritiba, com passagens marcantes por Vasco da Gama, Fluminense, do Rio de Janeiro (RJ), e pelo futebol italiano, tendo disputado as Copas do Mundo de 1974, 1978 e 1982; e Zinho, revelado pelo Flamengo e campeão da Copa do Mundo de 1994.
Mas, sem dúvida, a maior destaque é a meia Formiga, revelada pelo São Paulo e que disputou as Copas do Mundo de 1995, 1999, 2003, 2007, 2011, 2015 e 2019, e as Olimpíadas de 1996, 2000, 2004, 2008, 2012 e 2016, tendo sido medalhista de prata em 2004 e 2008. Foi também campeã dos Jogos Pan-americanos de 2003, 2007 e 2015. Formiga é a atleta que mais vezes vestiu a camisa da Seleção Brasileira principal, tanto entre homens como mulheres, com 151 partidas. Recorde que, provavelmente, ainda vai aumentar, pois a incansável Formiga tem tudo para comandar nossa seleção feminina de futebol na próxima edição das Olimpíadas, em julho e agosto, no Japão.
Além da já mencionada alusão a jogadores laboriosos como “formiguinhas”, são poucas as expressões boleiras que utilizam insetos [8], sendo duas delas usadas de modo pejorativo, caracterizando falhas técnicas: quando o goleiro sai mal do gol e não consegue alcançar adequadamente a bola, diz-se que ele saiu “catando borboleta”, ao passo que o jogador que não dominou corretamente a pelota “matou mal a barata”. Uma homenagem nada honrosa a esses representantes, respectivamente, das ordens Lepidoptera e Blattodea.
Por falar em homenagem, aqueles que assistiam na década de 1980 as transmissões de futebol da TV Educativa, do Rio de Janeiro, devem ter percebido que o título deste artigo reproduz uma das muitas expressões cunhadas pelo narrador Januário de Oliveira. Inesquecível autor de frases como “Tá lá um corpo estendido no chão” e “Cruel, muito cruel”, além da mencionada no título (“T’aí o que você queria”), Januário faleceu recentemente e deixou um vazio enorme no coração do torcedor. Deixo, pois, a ele minha homenagem. Afinal, “Ele sabe que é disso, é disso que o povo gosta”. Descanse em paz, “Januário de Oliveira – abraçando a torcida brasileira”.
Referências
[1] Dumas, Leandro L. 2021. Obituário zoológico: os animais nas carreiras de Diego Maradona e Paolo Rossi. A Bruxa 5(5): 66-109.
[2] Da-Silva, Elidiomar R. & Coelho, Luci B.N. 2016. Zoologia Cultural, com ênfase na presença de personagens inspirados em artrópodes na Cultura Pop. In: Da-Silva, E.R.; Passos, M.I.S.; Aguiar, V.M.; Lessa, C.S.S. & Coelho, L.B.N. (ed.), Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Perse, p. 24-34.
[3] Da-Silva, Elidiomar R. 2018. Retrospectiva 2018: o ano de consolidação da Biologia Cultural – e jamais isso foi tão necessário. A Bruxa 2(6): 1-8.
[4] Straube, F.C. 2010. As aves nos símbolos do futebol brasileiro: escudos. Atualidades Ornitológicas 158: 33-48.
[5] Dumas, Leandro L. 2020. A Copa do Mundo é o bicho! A Zoologia na maior competição de futebol do planeta. A Bruxa 4(3): 1-37.
[6] Dumas, Leandro L. 2020. Além dos muros de Gotham City: o curioso caso dos morcegos no futebol espanhol. A Bruxa 4(4): 1-27.
[7] https://www.youtube.com/watch?v=w-9IAmf6o2c&list=PLVk9Yf7CmhR0atKoXPcoJd9iZ_dqzolTa&index=38
[8] Da-Silva, E.R. 2018. No gogó da ema: a Zoologia no jargão dos boleiros brasileiros. In: Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. (ed.), III Colóquio de Zoologia Cultural – Livro do evento. A Bruxa 2(especial 3): 158-159.
[9] https://faunanews.com.br/2020/08/19/insetos-xaras-de-celebridades
[10] Nemésio, André. 2009. Orchid bees (Hymenoptera: Apidae) of the Brazilian Atlantic Forest (Brazil). Zootaxa 2041: 1-242.
[11] https://www.youtube.com/watch?v=pZKg8PqR3Fo
[12] https://www.sportskeeda.com/football/video-big-locust-james-rodriguez-colombia-celebration
[13] https://www.goal.com/br/news/3805/v%C3%ADdeo/2016/07/10/25505432/v%C3%ADdeo-borboleta-seca-l%C3%A1grimas-de-cristiano-ronaldo?fbclid=IwAR1SeRlZx-J1YMi_8oOrDZfrqNUP4-0YFneLob5Z3PBtopK7SJNcSbMiSDE
[14] https://www.elconfidencial.com/virales/2016-07-11/polilla-cristiano-ronaldo-memes-twitter-portugal-francia_1231099
[15] https://faunanews.com.br/2020/05/20/verdades-e-lendas-da-mariposa-bruxa
[16] https://www.wilder.pt/historias/esta-foi-a-borboleta-que-invadiu-o-relvado-na-final-do-euro-2016/?fbclid=IwAR1EuxUF2a2K4X2EDV90SWrGyFyNHfWrOX0yYVw3W_mnkoP1LvJRcUimXY8
[17] https://www.facebook.com/ge.globo/videos/237302230496733
[18] https://www.youtube.com/watch?v=fb-xnIhtSgA
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